terça-feira, 30 de outubro de 2018

Misantropia


E se, uma vez definido que o ódio à existência é o precursor da generalização, fosse possível, contraditoriamente, rejeitar todos os humanos e os seus grupos, mas, ao mesmo tempo, tolerá-los, aceitá-los ou, também, simpatizar com alguns deles? E mesmo odiando os seus gêneros, as suas identidades, escolhas e predestinações genéticas, ainda se abster da ignorância, do racismo, do preconceito, e inclusive se posicionar em defesa de sua liberdade? Que ao passo do absoluto desprezo pelo sexo feminino empodera-o? Ou em respeito à cor, preferencialmente segue a mais clara? Talvez diante destas absurdas contradições haja um aspecto humano de ressentimento e repressão — e de infeliz naturalidade. Possivelmente, nas mais profundas camadas do ser, todos sejam respeitosos com a sua espécie e se distanciem do homicídio, e não o instinto animal nos mate: mas a racionalização sentimental. Talvez criamos um distanciamento tão incalculável da fúria da sobrevivência que passamos a depender; para as chacinas, os genocídios, as prolongadas mortes massivas; da consciência, do ego e do ressentimento. Primeiro porque apenas o ressentido, o ignorante e o orgulhoso odeiam. O magoado percebe que aquilo — ou aquele — não se encaixa dentro dos seus parâmetros de crenças e opiniões; o leigo dança com a sua falta de compreensão imparcial de detalhes, de aspectos plurais da existência e da ciência investigativa para com os seres e as situações, e justamente por isso odeia. Por último, o orgulhoso, embora possa evitar a mágoa e a ignorância, por pura imagem de si evitará fraquejar, e por isso, intencionalmente, odiará.

Entretanto, identificado os três primordiais aspectos do ódio, não se logra de neutralidade um indivíduo, pois até sem querer terá uma dessas características associadas a si, quando não um pouco de cada — ou uma mistura de duas. Todo mundo ressente, ninguém conhece tudo, tampouco deixamos de nos amar, ainda que nos amemos infimamente (do contrário já teríamos nos auto-aniquilado). E essa é a brecha da misantropia. Dessa maneira, tendo minimamente um ingrediente da receita do ódio, permitimo-nos, com muita elegância, abominar ao menos um grupo de seres e escapar dos julgamentos humanitários com as justificativas mais divinamente escabrosas. Não o suficiente, repartiremos a responsabilidade com os nossos ancestrais. Depositaremos a maior parte da culpa neles, mas não corrigiremos o nosso comportamento, passe eles por um filtro racional de apoio científico ou histórico. Afinal, quão normal é enfurecer-se com a injustiça periódica do mundo — e o que fazemos é senão uma forma de balanceamento.

Uma das formas mais viscerais da amargura é contemplar uma vida que não seja a sua, pois exclusivamente no ato de comparação, ao visualizar algo e, por mania ancestral de padronizar a vida, estabelecer paralelo entre você e outrem, é que a inveja se estabelece por camadas mais nebulosas e invisíveis. Apesar de residir integralmente na alma, o corpo estabelece uma eficiente forma de contenção, inibindo qualquer sentimento fervente de cobiça. Mas a porta de contenção é, a longo prazo, um mero adorno, então aos poucos o gás venenoso da inveja vaza, até penetrar completamente o ambiente. Nesse momento, temos a sensação lacrimejante e trêmula da amargura. Quando, completamente pelados e vulneráveis, encaramos a vida brilhante do outro lado e comparamos com a escuridão fétida do canto onde pisamos, para vermos que, livre-se do ego ou da falta de conhecimento, você ainda está preso no paradoxo da escassez e sempre almejará o que não tem, independente se é belo, sublime ou infeliz mas singular. E por não ter, e por saber que nunca terá, você sente-se compelido a odiar o que não tem.

Nascemos burros, isto é um fato. A não ser que um recém-nascido tenha concepções divinas, este não terá as noções que consideramos mais básicas. Pelo contrário, embora extremamente amável, agirá como um completo idiota — pois é estritamente isso: um idiota. Não por escolha, obviamente, mas por ignorância. Num processo temporal, familiar, experiencial, educacional e social (e por mais uma soma extensiva de als), presumivelmente a criança estará encaminhada para um processo de contínuo aprendizado, o qual se estenderá até o destino de sua efemeridade. Cômico, mas logo após começarmos a aprender não paramos mais. É o fardo e a benção, depositados homogeneamente. Conhecimento, contudo, é falho. Qualquer forma de aprendizado é passivo de alterações humanas e, portanto, assustadoramente subjetivos. Embora a história seja de fatos incontestáveis, ainda é um conhecimento de pureza passageira, e contada por documentações e seres volúveis. E, por conta da subjetividade, toda história pode ser passada (mesmo pelos seus participantes), por filtros, interpretações e desenrolares alternativos. E, então, se na história, onde a imparcialidade deveria se manter inabalável — apesar de haver uma dúvida universal quanto ao quão imparcial podemos ser —,  mas ainda sofre de contínuas mudanças, pode causar confusão ou incongruência; quando ondas incalculáveis de informação colidem com nós, promontórios, outras fontes nos tornam paranoicos quanto suas veracidades. Logo, se a quantidade de informação é desproporcionalmente elevada em comparação com a verdade, evidente torna-se o fato de que, além das boas e (mais) imparciais fontes (possíveis), podemos nos afogar numa contaminação de ideias falsas, equivocadas, empiristas e/ou extremamente infundamentadas. E sem a experiência do garimpo instrucional, é possível passar a vida inteira sem diferenciar o lógico do divinamente estúpido. E, às vezes, não por falta de conhecimento, mas por cultura corrompida, pela hipocrisia da ignorância consciente (porque somos todos inerentemente ignorantes e, por conseguinte, hipócritas, e podemos separar divisões de hipocrisia — como a consciente que quer se corrigir, a não consciente e a consciente que não quer se corrigir), odiamos aquilo que não entendemos adequadamente.

O orgulho, todavia, é traiçoeiro. É um dos inibidores da sinceridade e assim que envolto por ele, torna-se difícil, para mim, ser um odiador declarado. Há selvagens repressões, como acontece com todos, e contento-me, salvo pela camada metafísica do meu pensamento, em deixar esses vislumbres ascenderem por um momento e logo desaparecerem. Digo: são temporários e inevitáveis, tão cedo passem não significarão nada e jamais poderão ferir o meu status de aberto para a tolerância humana. Provavelmente anseios fracos e perdidos, navegando por entre minhas convicções e dando um singelo passeio para que eu comprove a superioridade do meu amor humanitário. Aqui, agora, somo duas características atemporais: o ressentimento e a abençoada ignorância - ela que permite-me, nesse lance de escadas eterno, continuar a aprender -; para não odiar somente um grupo (pois isso seria injustiça contra a minoria), ou dois (o que se configura como um atentado a uma causa), mas para acima dos três e dos quatro, dos cinquenta, dos cem, dos quantos houverem; visto que isso, sim, é permitido pelas leis existenciais. Odiar seletivamente é raso e canalha, mas se juntar ao movimento misantrópico, não. É permitido, para o mundo e, inclusive, para os humanos, declarar (e eles devem pensar que há um viés satírico nisso tudo) o seu ódio para com a humanidade. É perfeitamente aceitável, e não incomum. Para todos, o desprezo pela raça humana é largamente compreendido, porque, em determinado nível, todos nós nos odiamos. E a repulsa contra a nossa natureza é inseparável da consciência do que somos. Reconhecemo-nos como animais espiritualmente cruéis, que atingimos o topo da cadeia alimentar não por força, nem por esperteza, mas por acaso. Cometemos, então, devastações sanguinárias e criamos, assim, um legítimo movimento contra nós mesmos, com a esperança de que, odiando-nos uns aos outros, poderemos restaurar o amor mútuo.

Tudo bem ao se declarar misantrópico e sociável, nós compreendemos essa declaração. É permitido odiar a todos, enquanto amplamente reprimem as odiosidades seletivas, já que consideram inofensivo a conduta e a estereotipa a um comportamento antissocial. É compreensível que, embora queiramos o fim da nossa espécie, por orgulho, queremos ver até aonde ela irá — e o quão humana consegue se manter. Por vaidade não nos desprenderemos de nossas existências. A angústia de entender se há um sentido no final.

Sem dramaticidade ou exageros sociais de repreensão, abraçam a misantropia não como uma forma mundial de intolerância, mas como a resposta para a pergunta: o que você acha dos seres humanos?

E você responde: eu os odeio. E, surpreendentemente, está tudo bem. É a resposta da humanidade para a humanidade.

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