terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Confissões Para Uma Boneca Parcialmente Muda

zerochan

Quando notei, perturbado por despertar tão repentinamente, já estava sentado na beirada da cama, e os meus pés se apoiavam sobre a cerâmica ligeiramente fria, como se esperassem um impulso para erguerem o meu corpo e, por algum motivo que me desconhecesse, vagueassem pelo quarto; não tão grande para caminhadas noturnas. Suava como um queijo derretido, embora a temperatura do ambiente estivesse gélida, e isso fosse resultado de chuvas ininterruptas. A minha noção de horário, graças a uma penumbra não inteiramente densa, ainda tentava se reajustar. Olhei pela brecha das cortinas e vi um céu azuladamente escuro, mas não tão negro quanto o da meia-noite. Talvez fossem quatro da manhã. Não havia como eu ter certeza. Tentava recordar o motivo exato o qual fizera-me acordar. Existia uma alta probabilidade de ter sido um sonho. Um assombroso, apático e enervante sonho, daqueles que nos despertam no sobressalto e engatam as suas unhas reflexivas durante o resto da noite. Sonhos cujas naturezas tocam os nossos mais maliciosos e intricados intentos e os fazem ascender em forma de abstratismo e simbologia — ou às vezes como uma mensagem explícita e narrativamente bem-estruturada. Entretanto eu não me recordava de absolutamente nada, sequer de um fragmento. Foi quando, bruscamente, uma voz percorreu o silêncio até então inabalável do cômodo e transformou o meu suor quente no mais glacial líquido. Este deslizou por minha têmpora e aterrissou numa superfície plástica. O barulho inesperado, pois o colchão provavelmente seria o pouso oficial da gota de meu suor, fez-me vibrar de nervosismo. Lentamente conduzi a minha cabeça para o lado e a vi, confortavelmente sentada com as pernas cruzadas e portando um sorriso gentil e plástico.

— Oi — murmurou a boneca. A sua aparência, apesar de esquisita, não se mostrava ameaçadora, tampouco causava-me terror. Era loira e tinha cabelos bagunçados (há anos não haviam sido penteados), quase pregados, além de vestir uma roupa envelhecida e de azul desbotado. Via-se no seu rosto um traço longínquo de maquiagem, e parte dela se estendia borrada. — Não vai responder?

— Oi — disse, quase sem voz. E foi tudo o que consegui dizer.

— Tá acordado por quê?

Ela ajeitou a franja e a pôs de lado.

— Sei lá. Nem eu sei. Acordei num susto. E agora você apareceu.

— Teve um sonho ruim?

— Acho que sim. Só que não lembro dele. Só sinto que foi ruim. Mas o quê que é isso? Por que 'tamos conversando? Você geralmente fica ali — apontei para o canto do quarto — parada e assustada; e sem se mover; sim, 'cê não se move. Como é que tá aqui agora?

— E o que te aflige? — ela respondeu gentilmente e, em seguida, se ajeitou na cama e se arqueou para próximo de mim.

— Nada, só tô curioso, mesmo. Me diz, o que cê quer? Eu 'tava tentando voltar a dormir, mas você me assustou. Eu ia deitar e tentar me lembrar desse sonho que te falei. Que esquisito. A gente geralmente esquece os sonhos assim que despertamos, como se a gente precisasse se livrar deles o mais rápido possível. Não é estranho? Que não possamos guardar os nossos sonhos conosco? Conscientemente? É o pavor da mistura?

E entrei em uma profunda meditação, enquanto ela permanecia quieta e observava. A esse ponto, o meu suor já cessara e os meus batimentos cardíacos fluíam calma e suavemente. A noite parecia idêntica, quase como se o tempo se congelara. No fundo, trazia-me conforto, pois quanto mais as horas pudessem se arrastar, mais o amanhecer se tardava, e eu não precisava acordar. Acordar significava viver. E viver, por conseguinte, significava encarar ciclos nefastos de frustração e incompatibilidade. Para ser franco, aquilo, no momento, causava-me muito mais angústia do que o fato de que precisava conversar — ou era desabafar? — com uma boneca. Virei-me e sussurrei temerosamente.

— Posso desabafar?

Mas sequer precisou-se de uma aprovação verbal: os seus olhos azuis fixaram-se nos meus e a sua inquietude assentiu.

— Eu acho que tenho uma ideia do que pode ter sido o sonho. Eu não o vejo claramente, só que eu o sinto. Sei muito bem que não era feliz. E que eu chorava, como uma criança faz quando a mãe se afasta. Mas... não um choro integralmente triste, sabe? Certamente eu 'tava amargurado. Isso eu podia saber através do meu peito e do aperto nele, mas talvez boa parte das lágrimas vinham de um sentimento visceral de raiva, e não de infelicidade. Entende o que eu 'tô dizendo? Acho que nunca vou conseguir me lembrar, visualmente falando, da narrativa, da história que ele quis me contar. É presumível que todas as suas imagens ou continuarão borradas ou brancas. Só que há uma coisa... há, com certeza, uma coisa impossível de se virar as costas e esquecer: isso é, as sensações. Elas, eu não tenho dúvida, não mudam ou desaparecem. Solidão, também. Sabe quando, por algum motivo que você não consegue esclarecer e compreender, ainda que saiba resolvê-lo com o uso da lógica, todos te evitam? E te veem como uma pessoa suspeita ou danosa (ou mesmo as duas coisas) e precisam se manter distantes? Da maneira mais indiferente? Bem, eu sei. Passo por isso todos os dias e, às vezes, deprimo-me irreversivelmente. Porque, para quem pudesse me conhecer como os mais próximos conhecem, não haveria o que temer, mas o que sentir pena e compaixão. Eu não lhes causaria mal algum, certamente que não. E foge de mim, para falar a verdade, o caráter cruel e insensível para fomentar terrores à vida alheia. Compreendo que agora a minha fala se complicou. Que estou rebuscando o meu jeito de falar. Mas, acredite, não é incomum. É assim que me comunico e acho natural para se transmitir ideias complexas — ou sentimentos, como o sonho fez.

Tirei os pés do chão e encostei-me na parede. Aproveitei a necessidade de uma fonte externa de calor e, com o cobertor bagunçado, cobri tanto eu quanto a boneca. Ela pareceu muito grata, porém continuava a se limitar quanto à fala. Os meus olhos instintivamente pesaram com a crescente melancolia e fui conduzido de volta à meditação e ao discurso.

— Penso, então, que sou inútil e não sirvo para as relações humanas. E o que é um ser humano sem as suas relações? Apenas um ser? E um ser que representa o quê? Um camundongo? Mas eu não aspiro uma busca de culpa e tento direcionar esse peso a alguém. Não acho que alguém o mereça, exceto eu. É sempre com isso na cabeça que vou dormir, todos os dias à noite, pesaroso e angustiado. E percebo, como mais ninguém: o próximo dia será indubitavelmente pior. Olhe, boneca, externamente sou normal; mas, em essência, sou matéria feita para ser odiada, cujo papel neste mundo é senão o da solidão, do desprezo e da impossibilidade de identificação. Fui criado por moldes excêntricos e nenhuma peça se encaixa. Aqui, entretanto, sou ignorado por todos os tipos de peças. E nem mesmo um molde universal poderia encontrar correspondimento quando este busca conscientemente fugir dele. É uma merda, é como posso resumir. Se tentar não basta, e não por falta dele eu já saiba que os meus recursos se exauriram, deveria eu fazer o quê? Quando a vida rejeita ação, como eu posso buscar um efeito? E é dessa forma que chego ao pensamento: eu deveria desaparecer. Não por morte, sabe? Pois eu teria espasmos de raiva em considerar suicídio como retaliação, visto que, uma vez marcado um fim imutável, não poderia me deleitar com as repercussões da minha escolha, enquanto misteriosamente evaporar quiçá traria-me resultados agridoces e computáveis. Então simplesmente não adiantaria morrer, quando o que me deprime reside inteiramente na vida. Eu poderia, sim, desaparecer, mas é provável que eu não faça isso. Primeiro porque se nem em presença me dão atenção por que dariam quando eu não estivesse? Pelo contrário, aceleraria o meu processo fantasmagórico e, no fim, abalaria os meus nervos. Meus nervos... meus nervos... é isso? Ninguém é obrigado a responder ninguém, é? Tô me preocupando à toa?

Penteei o cabelo com os meus dedos e soltei um ar ardoso e pesado. As costas me doíam, o sono apertava, parecia que todo o quarto estava imerso em névoa. Ou talvez estivesse, de fato — por alguma brecha da janela que a trouxe para dentro.

— É isso o que significo? Exato! Entendo! Aos conceitos do universo, represento o menor átomo de importância; porém por que havia de ser assim aqui, também!? Quando as regras mundanas deveriam ser niveladas ao nosso nível enquanto seres!? Sou privado do amor, consigo aceitar essa sentença! — esperneei e as mãos tremularam... a respiração ascendendo e acelerando. — Eu só preciso de um outro gozo! Se não posso desfrutar do sublime e do belo, não posso ter os meus próprios?! Por quê?! — gritei desesperada e furiosamente. Lágrimas começaram a escorrer vagarosamente, conforme acontece numa alteração súbita de emoções. — Por ser uma máquina dotada de sensibilidade que adora discutir sobre as camadas da existência, tenho de ser arrastado e condenado por aqueles que preferem uma vida mais ordinária, ignorante e confortável? E, por qualquer circunstância miraculante, não há ninguém como eu quando observo os arredores, contudo surgem aos montes em distâncias e situações impossíveis de contato! É isso! O meu sonho! Era este o sentimento! Era esta toda a merda na qual eu sofria infindavelmente e vivenciava! Busquei afastamento e solidão — então tive, mas agora não quero; fui indiferente com as pessoas — então elas foram comigo, agora quero atenção; ignorei todos os tipos de relacionamentos — então fiquei sem nenhum deles, e com desespero desejo um só! É isso, portanto!? Não a consequência da minha apatia... não, não! O débito do meu próprio isolamento! Sim, afinal podia eu, a qualquer momento, atraiçoar-me e escapar ao recinto da sociabilidade farsada, embora isto resultasse eventualmente em danos e mortificações à minha personalidade — ou, já tendo o costume de chamar, alma. Mas não é sociabilidade restritamente isso: um conjunto de farsas e acobertamentos, ensopados pelas narrativas do intérprete? Diga-me se não é! Um manto fino de bem-estar que protege as nossas vidas — e que apenas os outros indivíduos o enxergam. Eu não enxergo o meu, independente de quanto esforço coloque, assim como a pessoa que o visualiza não é capaz de ver o seu. É tão fino como papel, mas escuda adequadamente, se não considerarmos as vezes em que desaparece. E a sua função é demasiadamente simples! Surgir quando alguém nos acompanha, para, assim, prover a esse sujeito o máximo de conforto, prosperidade e otimismo possíveis. O seu efeito é claramente ilusório, e consegue transformar uma situação trágica em motivos de anedotas e risadas; num mar brilhante de alegria e harmonia. É, também, uma caixa de desejos. Esta, por sua vez, sustenta um aglomerado de mentiras. Aqui entra três características engraçadas: o manto é fino e frágil, mas paradoxalmente resistente. Contudo, como qualquer engenho humano, há de existir uma forma de perfurar o seu agraciado corpo: o tempo. O tempo não o rasga, simplesmente o retira e transparece tudo aquilo que essencialmente ele é: uma futilidade soberba do ser humano moderno em fazer um pano retalhado cobrir as suas angústias e ressoar a perspectiva manipulada de contentamento para com as pessoas circundantes, enquanto o resto — todo ele — desmorona. O empoeirado latente de cinzas trágicas da vida. A única forma que remove o pesado tecido sem transparências e traz à tona um bocado da natureza humana. Banhada pela incerteza atroz. Não está em todos nós? Esta vontade irredutível de sempre parecer bem, seja financeira, psicológica e fisicamente? Mesmo que estejamos numa contradição colapsada ao que queremos sentir e transmitir?

Ergui a cabeça bruscamente e cocei o pescoço com as unhas. A atmosfera espessa apertava as minhas narinas e a respiração fluía com esforço. Descansei os olhos num aperto e escuridão adentro me induzi.

— Em meus escapismos — disse, mais calmo e compassado, de um modo que soasse como se eu estivesse cautelosamente escolhendo palavra por palavra —, vejo-me andando perdido numa floresta densa e profundamente silenciosa. Caminho sobre um solo úmido, sendo cortejado por um sútil e gélido vento. Não temo. Não sinto qualquer espécie de medo. Nem do que possa surgir e me surpreender, nem da completa falta de direção. As fileiras de árvores, cujas espécies fogem de meu conhecimento, cercam-me a quilômetros. Olho para um lado e para o outro, mas há apenas natureza. Nenhum sinal de civilização. Mesmo assim, não me sinto sozinho. Pelo contrário, estou esperançoso. Continuo a andar na vastidão. Contemplo o enorme céu e, por um instante, minha visão cega. O sol está absolutamente imponente nas alturas, entretanto, não sinto o seu calor. Abraçado pela sua luz, fecho os olhos e sorrio. Nego em espírito a luz da minha individualidade e me divido em oscilantes movimentações emocionais. Há muito tempo, uma entidade encontrou vida e conforto no invólucro de minhas vulnerabilidades, acampando-se abaixo de uma árvore extraordinariamente imponente e colossal, cuja presença firma-se como uma das únicas vidas do campo infinito. Nesse campo infinito, a atemporalidade de meus sonhos está sob a proteção de uma grande fortaleza branca, de materiais jamais estudados, mas apodrecida pela preguiça e pelo recuar vicioso do meu ser. E usualmente abrigava-me na sombra terna da arvore, encarava o horizonte infindável e, de repente, uma tranquilidade cadavérica possuía o meu corpo. Enterrado no chão eu solenemente era, enquanto a grama do mundo simulado gozava no mais perfeito deleite. O descanso estava ali. No ambiente sublime que eu mesmo criara para o inequívoco alívio de todos os males. Mas toda a solidão um dia chegou ao fim quando, na borda do buraco na terra, uma maligna sombra de olhos sangrentos encarou-me gentilmente. Nela havia um sorriso que era sincero, fantasmagórico e perturbador. De fato eu não deveria ter medo daquela figura sombreante, afinal, acima de tudo, era eu. Entretanto, a imposição de sua presença não ressoava como intima, mas desconfortavelmente individualizada. Como se, apesar de tudo, no fundo, fosse uma outra consciência, desvirtuada da minha; única, assumindo uma forma antropomórfica; uma entidade cujos princípios se baseavam em espontaneamente se criar do horror desconhecido daquele lugar inexplorado da mente e roubar os empregos mentais mais qualificados de moralidade. Não havia como definir o mal na sombra, tampouco dizer que as suas intenções metafísicas eram boas. Nela, certamente, podia se observar o mais complexo conjunto de anseios — conjunto que não poderia compreender. Ela desejava a destruição tanto quanto o nascimento de forças, pois o paradoxo era uma das características da imortalidade. O ser perfeito é o exemplo mais divino de um paradoxo. O tudo é paradoxal justamente por abranger opostos. Um forte sendo fraco, o aniquilamento da criação. De maneira súbita, sinto-me profundamente afetado pela esfera da vida, trancafiada no mais seguro porão de minha existência. Suas curvas me encaram, mas eu não consigo retribuir, pois seria incapaz de enxergar além de sua forma e magnitude. A penumbra do meu ser então torna-se inexistente, imergindo numa escuridão absoluta. E quanto mais fundo eu penetro em meus devaneios, mais absurdo divago e transmuto-me. As estórias não se encerram enquanto a minha consciência suplica por atividade. Agora vago entre rascunhos e investigo possibilidades, atrás de miúdos pedaços conceitualizados que, para mim, ao os ver neste momento, parecem ter sido criados por um estranho, de diferente época e visão. É isso? Estou tão perdido em mim que qualquer busca em outro é senão a mais idiota, incrédula e desperdiçável procura? E sabendo da irresolução intrínseca que cada caos dentro de cada ser abriga, fomos, antes de questionar, condenados a nunca nos encontrarmos; a destruir o mito da laranja; da união profética e, por último, a considerar uma junção própria: da repartição de nossa essência para a soma eventual com sua divisão? E se tudo leva ao amor próprio como única condição plausível de correspondimento, o que resta para aqueles que se odeiam? Um sonho? A eterna caça dele?

— Sim, é isso mesmo. Você entendeu — respondeu-me a boneca numa risada breve, pela primeira vez depois de muito tempo, assustando-me. — Você finalmente entendeu teu sonho. E agora pode acordar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário