terça-feira, 24 de abril de 2018

Azul Fosco

zerochan link

     Aquele dia azuladamente monocromático ainda me frustra. O fosco da escuridão abriga todos os meus desesperançosos flashes e, de repente, o ínfimo durar daquela despedida é estendido infinitamente em minha própria perspectiva temporal. Cada vez que rebobina, assume uma forma e um significado diferente; entretanto, independentemente de quantos reinícios dramáticos houver nos lapsos, apenas um sentimento permeará, sem fim, o momento: a frustração. Pois nada é mais frustrante do que descobrir que algo maravilhoso aconteceria com você, mas fora evitado por circunstâncias banais e desvios bobos, tão malignamente inafetivos! E esse esticamento na memória é insuportavelmente doloroso para o ser. É a afronta, o desafio da vida para com suas crenças — finalmente, o delírio. Está mortalmente julgando-o, colocando em evidências a contradição moral e existencial construída por si próprio, gargalhando da sua incapacidade de admitir a covardia inerente de seu caráter, do medo de ser enterrado pela hipocrisia. A memória será negada todas as vezes em que ousar aparecer, mas, em cada negação, sobrará um fragmento reminiscente — e o acúmulo dessas peças descartadas montarão o quebra-cabeça anacrônico da verdade.
     Vejo-me no vidro do carro. O meu reflexo sendo golpeado violentamente pela movimentação do cenário borrado. Na penumbra, aguardo o meu celular iluminar a aura de melancolia. Na cabeça, reproduzo todos os instantes impotentes de minutos atrás. Ora as imagens são nítidas e amargadas, ora os borrões contam uma história impossível de quantificar o não acontecimento. Tenho impulsos, terríveis intentos de desconstruir-me; de desmoronar a cabeça sobre o vidro e permitir que o balanço interminável dele tonteie meu sofrimento. Não havia como retroceder — exceto em memórias —, não podia consertar o tempo, nem a vida, nem uma ação já disparada sobre a esfera da causa e efeito; não naquele momento. E não importava o quão intenso permitia-me mergulhar na aniquilação e no arrependimento, porque ambas as coisas apenas me atraiam para a realidade. A verdade é a verdadeira aniquilação. O arrependimento somente aprofunda o choque.
     Ao longo de dois dias não consegui dormir. Bem, eu tive duas horríveis noites de sono por conta de uma pessoa. Por mais intrigante que possa parecer, ela veio fantasmagoricamente invadir meus sonhos e causar-me enorme tristeza e insatisfação; pois ambos dias foram sonhados a respeito dela e de meu intento em me aproximar e penetrar seu amor. Não amo facilmente. Por Deus! Não sei, francamente, o que diabos está causando tal maldito sentimento! Mas não há maneiras de contestar que parte de mim fora afetada por ela e seu olhar magnético e profundamente azul. Muitos foram os momentos os quais viajei na imensidão universal de seus olhos e mesmo, explicitamente, presenteei-os com elogios. Talvez eu tenha enlouquecido e fui consumido pela ironia e o brutal karma da farsa. Talvez seja uma peça de natureza maldosa que anseia em derrubar minhas convicções e meus mais elaborados conceitos de solidão e plenitude. Fora bom, confesso, embora, em específica ocasião, eu tenha atingido níveis tão profundos de depressão que, por momentos, sucumbi ao desejo de eliminar-me — o qual, pelo menos por agora, foi devidamente suprimido. Conversamos muito e igualmente trocamos olhares. Por vezes sorríamos, por vezes apenas nos observávamos. Não nos aprofundamos no campo do conhecimento permuto, visto que ela parecia menosprezar a filosofia e todo o saber que outrora propus-me a entender e absorver. Pensando bem, nossos gostos e objetivos parecem atingir um ponto de disparidade anormal e terrivelmente indistinto. Entretanto, não foi a sua educação ou sabedoria do dia-a-dia que me conquistou. Acredito que foram, simplesmente, nossas fitadas e sorrisos. Num plano distante, tamanhas nuances jamais sustentariam qualquer espécie de paixão; porém preciso apresentar-me como um ser obcecado com os miúdos detalhes da vida. São as coisas mais encantadoras da existência — e as variáveis que não apenas singularizam quaisquer animais como enriquecem cada momento do viver e oferece a possibilidade da diversidade. Para quem pouco observa, verá um padrão arrebatador; contudo, por mais vicioso este aparente ser, é, em detalhes, completamente novo e único.
     Divaguei. Trouxe a mim próprio o esquecimento, mas basta fechar os olhos e vejo uma faísca loira e contagiosa. Parece me perseguir, e sinto, algo de clareza espantosa, que nada sou para ela senão uma diversão eterna do presente e uma existência encantadora mas ridiculamente supérflua; uma criança no mundo real, cujas pretensões são alienígenas e distantes como o desconhecido deste universo. Sei, também, que não importa quantas vezes eu tente contatá-la — embora queira muito — não fará absolutamente diferença alguma, porque a paixão é algo mútuo, e não tendo nenhuma vez suspeitado dos anseios dela por mim, posso atestar que somente minha pessoa exagerou toda a ocasião. Pelo contrário, ela simplesmente desapareceu! E, para ser muito franco, acho que tudo acabou neste desabafo. Os sonhos, o sentimento, a conexão, o futuro. Não voltarei a vê-la tão cedo, e, quando isso acontecer — se acontecer —, ambos nos encararemos como desconhecidos e não haverá lembranças ou histórias. O tempo aniquilará as nossas memórias.
     Não é o destino, nem o azar, que me impede de falar com ela. São meros eventos incontroláveis, são causas e efeitos. E, às vezes, tudo que há para se fazer num momento desses é deixar frustrar-se e abraçar o caos e a impotência.
     Quando o hoje ficou tão distante? Eu ainda estou preso na mesma posição de antigamente, embora o mundo tenha se arrastado. É como se o tempo avançasse de súbito, numa velocidade tão inumana de se notar que todos os seus reféns fossem paralisados pelo seu movimento e, então, permanecessem nos exatos locais onde estavam. Os corpos envelhecendo, decompondo-se, mas nunca experimentando novas realidades. É o movimento de uma só posição. Andar sem sair do lugar. Conheço essa repetição como as inseguranças de minha alma, afinal, de tempos em tempos, esbarro-me com esse decadente espiral de defeituosidade. Às vezes, o choque é profundamente entorpecedor e disfarça-se de hábito — um padrão de comportamento tóxico e autodestrutivo, maquiado por explanações de espontaneidade. A natureza justifica o seu surgimento — e negar o natural é a maneira mais terrível de se entrar numa contradição.
     Divaguei, novamente, como sempre costumo fazer. Como eu disse, atualmente, eu não deveria estar neste local físico na qual me encontro. Tantos atrasos surgiram! E, com eles, arrastei-me cada vez mais para a aceitação e a tolerabilidade miserável. Fui feito um prisioneiro do meu próprio teatro — uma marionete! Privaram-me os sorrisos sinceros e as reações genuínas! Afinal, notáveis as situações que precisei vender minha naturalidade por baixo preço! Depois de algumas semanas inerte, não resta mais nada no estoque do humor senão tédio, irritação e muito desprezo, já que o tempo diminui as grandes coisas e aumenta as pequenas. O meu mel, no auge de sua doçura, encontrou o amargor paradoxal do envelhecimento e agora somente repulsa aquilo que antes atraiu. Vejamos que ser afastado de sua rotina pode-lhe afetar assustadoramente. Rotinas são, simplesmente, os hábitos que moldam você. Uma pequena parcela de significação existencial; um alimento lhe vendido todos os dias. Relampejam-te motivos, significados, levam-te adiante — a um rumo cujos caminhos serpenteiam o maravilhoso destino do seu eu total. O resplendor eterno da consciência e do absurdo dela.
     Porém, quando a sua rotina é desmantelada e interpolada com dezenas de outras absolutamente análogas a sua, o seu mundo é, de maneira visceralmente abrupta, girado de ponta cabeça. As suas crenças são balançadas com a verdade de outros mundos e apontadas como ilegítimas e ingênuas por indivíduos que não conhecem senão uma parcela insignificantemente minúscula da existência atemporal e plural. Mas você estará atolado nesta lama conspiratória, da cabeça aos pés, e a inverdade lamacenta tomará, tenha sua permissão ou não, a tua verdade de vida. A sujeira é uma espécie de fato absoluto. Todos os seres derivam dela. E é muito fácil aceitar a lama do que lutar todos os dias para se manter limpo dela.
     Por fim, transcendendo integralmente as emoções, regurgita o esquecimento. O lar da inexistência, o abraço amoroso e total, sem distinção, sem preconceitos. O esquecimento não nega nenhum de seus filhos e, sim, os leva ao cenário da espiritualidade, da abstenção dos sentimentos, o frio espaço que habita os gigantes e mata os medíocres de essência. Traz a solidão esmagadoramente convidativa! Onde nada existe, estar sozinho é uma escolha luxuosa. O arrependimento desaparece, a importância de uma opinião se reduz subatomicamente. De falsas justificativas, esculpiremos verdadeiras construções memoriais, e a reconstituição mágica dos flashes brilhará através do tempo, trazendo-nos a confirmação de que, no fim, eternizou-se daquele jeito justamente para que a singularidade não morresse, não se tornasse trivial e, tampouco, desprezível. Para que, em uma dessas nossas infinitas idas e voltas, pudesse ser tão único quanto foi, é e será.

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