terça-feira, 3 de julho de 2018

A Dança dos Passos Vazios

zerochan

     Antes de chegar, massageado pela vibração do veículo, plantei e nutri um convincente sentimento de importância em mim mesmo; de pacificidade amorosa, de intenções justas e resolutórias que ter-me-ia levado ao mais absorto estado de compreensão. Não pensei que toda essa justificativa serena pudesse ser invalidada com apenas uma aparição, uma vez antecipada. Jurei-me, com muita fé, indiferença perante o amor, a paixão, o afeto, e mesmo assim atormentado me senti naquela noite, mesmo quando toda festividade era um intento coletivo de felicidade e escapismo. Caminhei muitas vezes em torno daquela piscina, buscando alívio para a faísca de frustração, profundamente enterrada, pensava eu, que ansiava em se incendiar. O buraco retangular nem mesmo água possuía; era, no fim, tão vazio quanto o propósito da minha repressão. Num ambiente de balbúrdia, tão culturalmente explorado, de luzes contrastantes, eu apenas me via dançando no mais completo breu paradoxal de empatia e receio. Meus passos tímidos refletiam minha evidente covardia de mergulhar no que é banal, no que fora feito para ser desfrutado com a mais superficial intelectualidade, sem julgamentos profundos e filosóficos, onde a vergonha haveria de ser fundida com a coragem e se sobressair apenas no dia seguinte. Apesar de consciência, o peso não se tornava mais suportável, tampouco explanado, e cada vez mais se acentuava sobre a consciência da consciência de que as coisas não haviam de ser conscientizadas, mas apenas vívidas.
     Busquei constantemente companhia conhecida; queria estar confortável e locadamente perto de um refúgio, entretanto por muitas vezes sentado eu acabava ao lado de uma estranha, que, embora eu a conhecesse e a ela fosse conhecido, tratávamo-nos como desconhecedores de si. Ao passo que me mantinha afastado, ansiava pelo seu acompanhamento, pois não só merecedor de afeto achava ser, como uma afortunada exceção do sofrimento amoroso. Sofrimento, entretanto, foi justamente suscitado pela sua estranheza íntima, e a sua falsa empatia não me poupou dele. Não necessitou de tanto tempo para notar que, provavelmente, no meio da música nordestina, das danças e risadas, da comida tradicional e abundante, do vai-e-vem extraordinário de pessoas, eu fosse somente um apoio, uma peça em que ela pudesse se sustentar para alcançar outros interesses; que a timidez era uma desculpa esfarrapada de sua emocionalidade colapsada, uma força demasiadamente soberba, egoísta e covarde. E inebriado pelo álcool, surdo de razão e cego de lógica, tornei-me uma marionete da contingência e arrastado fui para o vale do desprezo, da obscuridade do aniquilamento. De repente, lembrei-me do sentimento tão gratamente enterrado no início de nossa viagem, e recordá-lo só me causou angústia e terríveis deslocamentos internos; afinal, ora achei a solução definitiva da frustração afetuosa, ora isso se transformou apenas em um experimento fracassado, que desmoronava aos farelos por um ínfimo contato exterior. 
     Quando, então, memórias piscaram. Novamente enxerguei nos momentos, embora descascados fossem sombrios e densos, uma luz sensata de felicidade refulgir. Poderia algo extremamente perturbador encantar? Por um momento, meu corpo rendeu-se à trivialidade e bailei na música desconhecida que causava-me repulsa — deixei ser levado pela força geral. A vergonha não podia, jamais, ser mais palpável que o meu sofrimento. E, em todo esse entregamento físico, nem mesmo ao íntimo desejo infantil, cujo impulso adormecia na espera de liberdade, pude conter-me. Saltei em superfícies elásticas, em castelos de ar, e, talvez desesperado por causa do tormento, arrisquei toda a minha integridade madura em uma vingança de criança; mas como orgulhoso fiquei. Era a minha redenção: a chance de provar que, de fato, sou enervante e irreparavelmente lúdico como fui julgado, e amaldiçoado por minha estranheza, e exagerado por natureza; mas minhas percepções não eram dignas de serem desprezadas. Não havia direito lógico, muito menos meu, de reduzir uma singularidade pessoal em prol da ignorância seletiva e cotidiana! E se humilhado teria de ser, que fosse! A humilhação consciente é a alegria do humilhado! É buscada, conquistada, e merece ser reconhecida tanto quanto a bagunça alegre do infeliz de espírito. Se dançar vergonhosamente é a punição do excêntrico, contemplar é o arrebatamento do comum. Danço! Mil vezes danço! Fervilho o rosto, deixo-o somente em sangue, mas danço com todo o peso da humilhação nos meus pés, até o fim, até ser chamado de louco! E o que falarão? Apenas que enlouqueci? Ou que estou, igualmente, envergonhando-me? Abraço ambas condições, convictamente o bastante para silenciar a tréplica do indivíduo!
     Por que alguém, intencionalmente, daria tanta independência para os seus sentimentos, os deixaria correr livres pelo ambiente, evidenciaria os sinais, rogaria por ações, mas é totalmente aversivo a tudo o que pediu? Seria, então, o outro indivíduo a quem é flertado, um ser naturalmente inversor? Alguém cuja presença é o suficiente para inverter todo amor em ódio, toda expectativa em frustração, toda atividade em passividade — e toda vida em morte? 
     Se sim, infeliz daquele que ousar nutrir o amor no campo infértil de sua dor.

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