sábado, 30 de março de 2019

Ensaio do Incompreendido - Todas as Partes


****, entusiasmado amigo meu, compartilho este ensaio com você:


   Uma, apenas uma única e miserável, e angustiosa e memorável, vez é o suficiente para nunca mais parar de amar. Não sabemos o que propriamente devemos amar, na verdade, não de início, pois não te ensinam isso logo de primeira. Ensinam-te, logo de primeira, geralmente, o dever de amar, ou que amar faz parte da natureza e tão logo você encontre o profético objeto de amor estará, se quiser viver como aqueles que o conceberam, pronto para roteirizar a sua jornada romântica, única, predita! Mas não te explicam, logo de primeira, que não conhecem muito bem sobre o amor, que lhes é um conhecimento um tanto dúbio, só repassam aquilo que lhes foram repassados; e, tão logo você encontre o objeto de amor, estará incumbido a também compartilhar a sua experiência e sabedoria, a ensinar que há um dever de amar, embora você não saiba precisamente explicá-lo, e que a natureza está em uníssono com o amor. Logo, entretanto, com a digna capacidade de questionar, a qual lhe surge anos após o dever, podemos criticar aquilo que é, aparentemente, pertencente à natureza. Pois não existe uma sensação intrusiva que de vez em quando nos invade? Aquilo que te faz pensar, não por medo nem por hipocrisia, que amar não é obter um ideal de felicidade mas de sofrimento? E veja: desde cedo enfiam criança adentro um conceito pra lá de absurdo e incogitável ao estágio mais ingênuo da existência, onde não adquirimos ainda a aptidão de duvidar! Induzem-nos a pensar que um conceito deformado — sim, afinal o que é o amor senão uma das extravagantes criações do homem? Que se baseou nos juízos arcaicos a respeito da reprodução, da parte animalesca de preservação, para romantizar o envolvimento bestial e a tara sexual? — é belo, doce, desejável, porém não é nada diferente da ganância. Precisa-se querer possar para amar, porque sem um objeto, um algo que lhe é conferido para guardar, não há desejo. Compreendam: só há desejo quando se há algo para conquistar, para querer adquirir, e nada mais possessivo do que desejar. E para disfarçar a repulsividade que o amor descascado traz à ética, à moral, damos-lhe e incutamos-lhe nobres ideais; camadas românticas, apaixonadas, literárias, racionalizadas; tudo num desejo de transmutar o sujo intento sexual em algo humano. Mas aí que se enganam... com certeza . Isto não é uma revelação cabeluda! Não se precisa revelar qualquer coisa transparente, cristalina como o diabo na terra! Não à toa que muitos casos românticos acabem nessas desgraças! Sabem por quê? Acabam em desgraças simplesmente porque eram imanentemente errados. E podem culpar aos seus pais, que deveriam culpar aos pais deles, e assim por diante, até chegar no paspalhão que decidira, socialmente, glamorizar o seu tesão! Também é isso, não posso deixar de afirmar: o amor é uma quimera social. E como é misterioso! Por céus! Talvez o único representante concreto mas ambíguo que temos de uma força sobrenatural. Não parece? Místico! Sim, pois, por mais que adestrem-nos tão jovens com as facúndias amorosas, só é possível amar alguém; ou melhor, só existe amor, de fato, quando temos um alvo. E toda paixão parece começar isoladamente. Se é uma patologia, então é uma patologia motivada por outrem. Sem um instrumento, externo, aparentemente, não se ama. Na verdade, não há flecha sem alvo. Ambas coisas são substanciais para si próprias. Faz-nos pensar, não? Quanto mais afundo você imerge os seus pensamentos sobre o entendimento da paixão, mais o seu objeto de estudos se transmuta, e tende a se tornar confuso. Às vezes, incompreensível. Esta foi a maldita esperteza do paspalhão que outrora disfarçara a sua perversão: é um conceito vago demais para ser especificado e explicado. É tão sagaz quanto à ideia divina, a de Deus. Mas um, cientificamente, afeta-nos quimicamente, por isso está a um flerte da doença — e é dele que quero falar. Digo, dizem que é bom. Uma tempestade de dopamina, de neurotransmissores "bons". Bons, ouviram? Se nem o homem consegue se decidir sobre o que é bom e mau, visto que é um conceito relativo às concepções subjetivas e éticas de quem o julga, não surpreende-me vê-lo se encantar com os efeitos positivos do amor. Sim... para o mundo moderno, nesse xadrez vicioso e violento, onde a racionalidade tornou-se uma necessidade para com a causalidade, amar é arremessar a cabeça num muro e sair sorrindo, com traumatismo craniano. Estou sendo exagerado? Bem, talvez... mas deixem-me perguntar algumas coisas: como você aprendeu sobre o amor? E se me responder: "com as pessoas", grito daqui: "óbvio, mas sagaz!" E se me disser que não, revido: aqui não falo especificamente. As convicções sociais-humanas (e, sim, estou me aproveitando de neologismos distorcidos) não são bem articuladas? Talvez tenha olhado para um animal fêmea, a mãe de adoráveis filhotes, acariciando e aconchegando com o seu calor a sua prole e pensado: oh, o amor!; mas a ideia de amor não nasceria, primariamente, do ato animal, afinal você não saberia descrever o que é amor, o que é a palavra!, se isto já não houvesse sido anteriormente repassado à sua pessoa, independente dos meios, por outra pessoa. Portanto as pessoas, logo de primeira, vem-nos descrevendo o que é o bendito. Provavelmente esse repasse esclareça um pouco a respeito das transmutações. Uma fofoca, por exemplo, é sempre o aumento desfigurado da verdade ou da paranoia, da hipótese. É algo autocrescente; um raciocínio miúdo, da borboleta, que somente precisa de um espaço na realidade para tomar multiplicidade e proporções tempestuosas. Assim surgem as religiões, as leis, os ideais, as regras existenciais... Talvez, logo de primeira, o amor não existisse... e fosse apenas uma invenção mirabolante de um tarado, a fim de esconder a sua culpa... e depois, graças ao pensamento coletivo, à paranoia da sociedade em estabelecer critérios, formou em substância invisível o tal, para crescer pouco a pouco, boca a boca, raciocínio por raciocínio, e repercutir, como de origem natural, por cada família, a sua importância. Seria então... uma justificativa que não esconde a sua essência e o seu berço primitivo? Todos que legitimam o sentimento, a tal substância, no fim não tiveram um encontro com ele e, de alguma maneira, mudaram seus destinos? É o que dizem por aí... pelo menos. 

   Por diabos! Nem ao menos sabem me explicar o amor real e o falso!

   E é obrigatório? Amar? Imediatamente, todo um globo responde: "não... não é... já que não podemos obrigar, mas para aqueles que decidiram isolar-se afetivamente não acabou muito bem, em? Em contrapartida, exceto para os mortos — às vítimas do ciúme; das guerras; do não correspondimento; da não adaptação; da fúria; da inveja; do coração partido; do suicídio; dos massacres; da paranoia e afins —, tudo está perfeito e indubitavelmente afável." Cômico, não? Costumam pensar em vidas mais agitadas e dinâmicas para os casais, e não é justamente o oposto? O libertário não é, contudo, o desmiolado melancólico que não é amado? Em outras palavras: o incompreendido? Se é difícil para ele se libertar, pois profundamente o inseriram essas crenças familiares, isso não há dúvidas. Negá-lo, o dito-cujo (shhh! não queremos invocá-lo), é como se abster de peças fundamentais para a vida, impugnar o absoluto. Tente contestar a verdade das pessoas! Tente! Dirão, em altivo e ressoante som, para catar coquinhos! E quem és tu, ser amargo e rejeitador, para contrariar a opinião global? Não obstante se livrarão de qualquer retórica, uma vez definido o tom incerto e indefinível da discussão. E, bem, por mais lógica que se use, para se negar uma ideia se necessita criar antes um sentimento de aversão, seja iniciado por pura racionabilidade ou por repulsa ao incorreto — e nisso estarão corretos. Se você repudia o amor, logo há de haver uma explicação sombria e pretérita, um princípio de causalidade. E se há, não importa. Não uma vez que já começara a balbuciar manifestos contra e encerrou por completo qualquer chance! Mas veja... estávamos falando de liberdade, não é? Idealizamos encontrar a metade laranjeira (é esta a expressão correta?) e, com isso, culminar uma interpolação vivencial gigantesca! Viver o resplendor! E encontramos, então, restrição. Antes era um círculo colossal, que abrangia tantos outros círculos, mas juntou-se a outro e reduziu-se de tamanho. Estaria disposto? Embora residir num universo tenebroso e solitário possa doer, nada mais dói, tão cáustico e ardente quanto uma facada, do que perder a liberdade! Trocaria, portanto, a liberdade? Para o quê? Compartilhar o seu sofrimento com outra pobre alma? E no que isso lhe completaria, afinal de contas, se ninguém nasce pela metade? "Senão um dos maiores excessos para se adicionar a um corpo cheio", diria um incompreendido.

   Agora... e para aqueles que acreditam... contudo não conseguem ser amados? Para eles, o que resta? Considero-os os mais infelizes de todas as categorias dos incompreendidos. São estritamente os desafortunados porque estão num meio termo: não negam o amor, mas sabem que a eles isto não os pertences. Imaginem, com todo entusiasmo e paixão, e com muita empatia, o quanto sofrem. Reconhecem a angústia em perseguir algo que foge de tu, e que possivelmente nunca será alcançado, enquanto todos, sentados e acomodados, sequer se esforçam para obtê-lo? Esticam as suas mãos não para muito longe do rosto e lá está: o fruto avermelhado. De repente, para os incompreendidos impossíveis de ser amados, uma monocromia assola os seus corações, ironicamente, tirando as cores do símbolo, e assim que percebem, já odeiam o seu anseio. É fácil odiar aquilo que não tem. E para eles, o que resta? Resta odiar. Fazem isso com classe — acostumaram-se com isso, finalmente, conquanto vivem num mundo engraçado (aproveitando-me da deixa). Dão-lhes (os que conseguem amar) tantos motivos para abominar que mesmo perdem o tato com os outros, e um encontro casual, ou virtual, são postos numa caixa de vidro, para serem contemplados de fora, sem envolvimento. Também não param de conhecer pessoas. Não são amados, porém estão sempre dando as caras com uma personagem nova, como se precisassem ser lembrados de suas condições. Para alguns, sem titubear, confessam as suas inclinações e amarguras em relação ao amor e esperam serem entendidos, e não são pouca as vezes em que recebem um sermão em vez de compreendimento. Não percebem, entretanto, que os não-incompreendidos são alheios a essas reclamações. Diga para um rico que dinheiro não existe e ele rirá loucamente. Desta maneira, sempre ouvem motivações. Os não-incompreendidos incentivam, demasiadamente, o acaso. Digo, para ele que atribuem o nascimento do amor. Ao puro caos! Como não rir? Como algo, cuja influência é irreversível à sua existência, aos seus projetos, às suas escolhas, à sua jornada, é casual? Quando deveria ser, sem a menor das dúvidas, um ato pensado, controlável e decidido mutuamente? Rá. Rá. Rá. É isso, então? Enlouquecer, desapegar e investir tudo nessa possível patologia? Deveria isso ser uma decisão nobre? E o que vale a nobreza diante da irracionalidade? Céus! Um dos motivos para um objeto de estudos ressoar tamanha jovialidade! Somente com tanto espírito juvenil poderia se idealizar e se apaixonar em tal grau pela ideia do amor. Sou levado aos arrepios!

  Mas, acho, não adianta muito discuti-lo, de forma que nunca sou levado a uma conclusão definitiva, onde me é retirado totalmente a ideia. Não seria belo e sublime, já como dizia Dostoiévski? Viver sem o amor? Aos incompreendidos, seria o paraíso, para os outros, o inferno — e não tem sido assim a nós? Pertencer a um fogo que amamenta a alma dos apaixonados e queima a sua?

   E não havendo alternativa aos pobre coitados: por que não amar o ódio ao amor?

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