quarta-feira, 13 de março de 2019

O Experimento


Há não muito tempo existia um menino. Passava as vintes quatro horas de seu dia em melancolia, e pouco parava de fato para pensar sobre a sua agonia. Claro: ela existia, a agonia, mas não ele. Há não muito tempo existia um menino que se considerava um fantasma — ou ao menos se sentia como um. Talvez não um fantasma, mas uma substância invisível — ou ao menos, sentado àquela cadeira, era o que sentia. Não sabia afirmar se a sensação jazia num futuro hipotético ou se findava no presente momento. Não parava de pensar, entretanto, nesse vago sentimento, pois aquele mundo certamente não permitia o existir das coisas invisíveis. Tudo era constantemente exposto, público, externo, poucas eram as entidades que escapavam às vistas dos olhos modernos. Até mesmo o mais simplório indivíduo, de alguma forma, possuía a mínima notoriedade. Afinal, apenas poderia ter a noção absoluta de realidade quando esta fosse testemunhada por outra. E se isto era uma regra; se para haver o observado precisaria de uma parte observadora; então não teria a invisibilidade um caminho definido e assombrosamente claro? Se fosse possível remover toda a notoriedade, a exposição líquida — não aquela aos cuidados da ciência, do estado primário da natureza, mas aquela protegida pelo zelo da contemporaneidade —, logo não haveria de existir o inexistente, o inobservável?

Contemplou com ansiedade essa ideia. Demasiadamente simples era a jornada para tal! Sem qualquer resquício de dúvida possuía os instrumentos necessários para iniciar a sua jornada fantasmagórica — tinha, afinal de contas, a característica natural para a inexistência: a desimportância. Pouco valia às almas sociais; todo o seu valor residia num quarto; por conseguinte não custava um centavo para o mundo, para os interesses humanitários, para o otimismo romântico. Um desafortunado de má índole, açoitado pela trivialidade. Alimentava-se da poesia pessimista, do humor infernal — por que deveria existir num galpão cenográfico? Mas não entendeu de imediato a dificuldade na simplicidade. O que significava desaparecer, pois bem? Não era um indivíduo naturalmente anunciado? No começo abraçou desdenhosamente o experimento. Nunca havia testemunhado um prazer como o de, por um instante, ser completamente indiferente às substâncias da realidade, de deificar a própria existência; de ser o tão famigerado criador do universo. Uma anomalia destrutiva, cuja aura eterniza a sua constante repulsa. Sentia-se livre, detentor de um potencial metafísico. Observava os observadores num plano acima. No fim, contudo, imediatamente apercebeu a sua própria intrusividade. Produziu o seu cenário, orquestrou a sua vida, não obstante compreendeu que se ria e se fazia de detentor de algo que nem em infinitos avanços teria. Deduziu que mesmo a soledade precisava de um espaço, e haver um algo é a antítese da ausência.

De início ofereceu a alma, depois as suas virtudes corpóreas, por último oferendou a sua eternidade. A cada experimento, a cada desconstrução, fundo impregnava o mal cheiro no ego. Avassalava-se na humilhação e na vergonha, pois tão somente na desgraça alcançaria o pico da auto-destruição. Não demorou para que estivesse viciado em ser fantasma. Quanto mais pressupôs que não podia inteiramente desaparecer, mais arrogante tornou as suas investidas. E foram se encurtando, tomando proporções anãs, tornando o regozijo um saboreio de dois minutos; tão breve e veloz como a amargura conseguinte, aquela que despontava como um aniquilador artefato de defesa, imediatamente conscientizando a vala a qual o seu receptáculo insistia em se acidentar e o arrebatando em culpa. Se conseguisse superar a opressão dos estágios iniciais, poderia se abster da manifestação pública? Mas não era o início o momento da irregularidade existencial? Notava ali, precisamente no ponto de transição, a importância de ser. Considerava cômico que a pesagem era convenientemente feita apenas quando ambas partes de uma situação foram projetadas numa probabilidade. Provava isso, portanto, que qualquer lado podia ser real. Irrealidade, no fim, tinha o seu espaço na realidade. Amou com muita intensidade o prazer da mortificação, de adentrar o intimidador espaço nulo, mas quando viu a sua inaturalidade para com o universo, reprimiu atrozmente o seu impulso. Este impulso ressoava com tal intimidade que jurava, lúcido, ter vindo intrinsecamente com ele. E tão prematuramente desejou que, momentos após, se atormentou com a necessidade de retroceder.

Estava devastado. Há não muito tempo idealizou brilhantemente a pós-vida dentro da vida, agora precisava não somente sacrificá-la como trucidar a si próprio, o seu eu construído, uma composição perfeccionista criada com meticulosidade divina. E sobraria o quê? Retalhos, pensou! Entregamos-nos à essas aventuras para testemunhar a suas consequências. Estaria especificamente aí o prazer do qual tanto tentam buscar! Não é a fantasmagoria, tampouco a vivência manifestada, mas a metamorfose! O corredor da interposição! E se viver está centrado no movimento, na mudança, o quanto valeria estar em qualquer um dos lados?

Notou o menino: o mundo sem fantasmas estava cheio deles.

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