Ela, a poetisa da morte, possui um prenome e dois
sobrenomes, não obstante abstém-se deles para lograr uma curiosa nova forma de
designação; que a ela muito agrada, visto que sua identidade real, embora
muito construída historicamente e de fato possua beleza, causa-lhe recordações
funestas. Obviamente, neste específico caso, há muito pode se culpar a sua
sensibilidade, não de forma total, entretanto. Para se ter algo contra um nome,
antes se necessita estruturar uma conexão emocional: apenas elas podem provocar
receios em algo que, em primeiro momento, não deveria atormentar, pois o quão
ameaçadores podem ser se representam apenas uma fração social do seu ser? E
ninguém é definido por nome, afinal. Somos definidos, e depois etiquetados.
Portanto, a sua alta sensibilidade em muito deve ter influenciado em sua
procura — ou arquitetura — por um recém-adquirido chamado. Poetas,
especialmente os mais sensíveis, como a da morte, se incomodam
facilmente com a vida, e vivem flertando, num jogo demasiadamente
revolucionário, com a morte — não em amarração física (já que a eles isto pouco
importa), mas espiritual. Celebram o efêmero num saúdo com a existência, e,
mesmo assim, conseguem ser grato por suas vidas e desejá-las como os mais
veemente otimistas. E nisso, talvez, têm uma dificuldade: quando os sensíveis
se aproximam da Morte, ou tornam-se Ela ou perecem diante dEla, muito mais do
que as pessoas comuns! E hei de deixar claro que não são comuns; não são e não
podem ser classificados de tal maneira, seria injustiça para com os geniais
excluí-los do espectro e colocá-los como seres medíocres. Não se enamora
intensamente a destruição de todas as coisas sem antes possuir uma força
extraordinária. Que vivência, em sã consciência, teria uma relação intimista
com aquilo que se encerra? Por que são imanentes e são dois estágios de uma só
coisa? Sendo assim, poder-se-ia afirmar, numa enorme ressalva, que todo
indivíduo, por compartilhar a tal característica, não seria comum, mas genial.
E é aqui, precisamente aqui, onde ocorre uma reviravolta em relação à
generalização, na qual, agora pouco, cometemos juntos: qualquer substância viva
precede o seu fim, isto é correto, contudo, aqueles que têm filhos com a Morte
são pertencentes a algo que sobrepuja o senso comum, temporal e espacial,
dos comuns — são os poetas da eternidade, os amantes do
incompreensível, infinito, inexorável e impoluto vazio. Vazio que reside
somente na relação recôndita com o estado da inexistência. Não se compreende
ao certo o que inicia esse relacionamento tão morredouro, o que sabemos é: não
se escolhe. São por serem o que são, pedaços destoantes do líquido preto e
insosso chamado de Morte, e nem por isso podemos atribuir predestinação. Tudo
que existe, certamente, possui o destino fatídico, mas este é o limite da
Morte; apenas determina as coisas que falecerão, porém não cria, e se não cria,
não se antecipa, se julga após, o que é muito mais fácil na lógica universal.
Acredita-se, então, que justamente por isso a Poetisa declara mais amor à sua própria
criação de um vocativo do que o que lhe foi imposto naturalmente. Desta forma,
são detentores inatos! Nem todos dispõem de bons espíritos para com suas
naturezas, o que não quer dizer que as abomina; não, não o fazem, amam, também,
e as veem de maneira deveras melancólica. Quando desejam fortemente a vida, não
esquecendo, evidentemente, de criticá-la, são aniquilados pelas raízes que o
conceberam — uma metafísica até acima da matéria mortal, considerando que ela
não pode parir. E o que está sobre a morte pode causar, sem sombra de dúvidas,
uma traiçoeira insanidade.
Evidencio, assim, que a Poetisa vivera uma infância de
tamanho sabor acre; por um lado existira em um momento onde a ingenuidade
mental intensificara todas as partes de esperança e aprazimento, como
seguramente vivem as almas mais moças perto de seus pais e de seus irmãos; por
outro, tocada pelo dedo seleto de sua Mãe, experimentou, tão
prematura e pura, um inferno de natureza covarde e abominável pelas entidades
máximas, o qual em nenhuma forma a destruiu. Prova-se primeiro o inferno para,
em deleite divino, tocar o paraíso. Nenhum paraíso, todavia, é livre de mal e
nem dos maus — e deveria. Isso certamente a introduziu para a adolescência numa
puberdade intensamente mais veloz e extemporânea, causando dois possíveis
efeitos: o amadurecimento precoce, cuja potencialidade intelectual brilha de
tal maneira que nem o mais encravado esforçado adquiriria, ou o envelhecimento
de estados duplos, aquele onde se vive novo num corpo velho. Não conseguira,
por conseguinte, evitar a condição inseparável daqueles que alcançam, antes dos
outros, maturescência, ou seja, a solidão. A solidão humana; visto que os seres
humanos são terríveis, socialmente, em simpatizarem com os indivíduos que os
deixam para trás, de uma maneira ou outra, sem investigarem os agentes, sem
conduzirem as razões e os fundamentos, mas julgando precipitadamente, com o ego
e a inveja, a capacidade brilhante de outrem, a qual evidentemente se explica e
se tem origem. De início a machucara, afinal nascera como um, nada obstante
notou que não precisava de humanidade, que, para ela, era indiferente se se
comunicava como pessoa ou se se parecia com um homem; não carecia de qualquer
traço. Admira-os, é verdade, pelo menos os selecionados e importantes, porém
não entoa a mesma nota. Era, como muito dissera, uma alienígena num mundo
abarrotado do espécime humano, residindo como forasteira no lugar que tanto a
encantou e a fez desejar cultivar amor. Muitas vezes questionou se para amar
alguém é necessário, antes, habitar o exatíssimo universo, e que se era de uma
espécie diferente, mas apaixonada por outra, sofreria de incompreensão ou
rejeição instintiva. Mas, querida Poetisa, você superestimava o seu disfarce.
Não era, era seu desejo, de corpo e osso. Para
gostar, ou amar, basta apenas sentir — até os alienígenas sentem, e você não
era um, se sentia como um. O sentimento, apesar de muito incompreendido,
demasiadamente simples é; é, finalmente, universal e toda espécie sente. Não
deveria ser tratado com inteira complexidade quando com facilidade pode ser
verificado, em muitos moldes.
Ao chegar no degrau que antevê o início do estágio adulto
obteve, enfim, uma explanação de vida, para verdadeiramente começar o
desenvolvimento existencial, o que se declara como óbvio numa perspectiva
lógica, sendo que nenhuma alma tem mais liberdade senão no afastamento da
ingenuidade e da responsabilidade jovial, na rebeldia e na exploração. A
curiosidade infantil se maximiza, a revolução do espírito de adolescente se
instaura solidamente, mas conforma-se com as barreiras impenetráveis ou as
indisposições individuais. Aqui, em específico caso, estamos muito próximos
da personalidade. Ela também estivera. Conhecera, agora num tempo
em que as pessoas tradicionais conseguiam se manter minimamente abeiradas, um
importante marco, um que afetaria o seu futuro de intrigante maneira. Quando
nos deparamos com a ascensão da idade, a inseparável contagem humana para se
medir a efemeridade das coisas que residem no cosmos, somos imediatamente
extasiados com um divisor de águas, que aos poucos, ainda que muito
invisivelmente, se faz de apresentação abrupta, uma parede que guia e sinaliza
para que não aconteçam colisões, e sim desvios. Assemelha ter tanta
naturalidade! Pois despontam rigorosamente em etapas de nossas vidas, em
divisões de vinte, geralmente, quase que a rigor, para promover uma mudança
existencial em cada ser que ouse se manter vivo. Apercebemo-nos, íntimos e
reservados, de que ainda somos animais — espirituais e artistas —, que sem a
caça somos caçados sem nem sequer exigir a existência de um predador! Tão
somente esta rocha perambulante é suficiente para matar os seus filhos
terrestres. Na fome, a Poetisa notara: o passado, imensuravelmente
agridoce, não me é mais alimento, o presente não me oferece as mesmas fontes
alimentícias — e aqui, mais uma vez, falo das refeições que não meramente o
corpo consome, mas, também, a alma! — e do futuro, o que posso obter? Posso
obter algo; decerto, qualquer um, alienígena ou humano, cachorro ou leão, lobo
ou lagartixa, pode cobrar uma parcela do seu lar — lar, mais tarde
percebeu, que era igualmente seu, e não uma exclusividade dos homines
sapiens. Concluira, por fim, pertencer às letras. E, solenemente, inicio o
Tratado da Poetisa da Morte:
Tratado da Poetisa da Morte
A Poetisa da Morte possui um prenome e dois sobrenomes, não
obstante abstém-se deles para lograr uma curiosa nova forma de designação. Não
posso principiar o meu tratado sem citar uma particularidade importantíssima
para a segurança de meus dizeres, de meu eventual monólogo: a Poetisa é
essencialmente, num resumo definitivo, brilhante com as letras e com a vida, tão
mais do que o modesto narrador de agora. É, também, muito tímida para se
expressar com a força e a virtualidade de uma voraz apaixonada pela arte da
expressão, da eternização literária, embora anseie profundamente ser capaz de
fundar as mais sublimes, nobres e elegantes composições de palavras! Teme, portanto,
ser incapaz de corresponder as expectações em torno de seu cultivado modo de
vida, pois ávida leitora se tornara e as páginas se transmutaram em material
alienígena, como muito se declarara, a fim de serem uníssonas para com a sua leitora. Elogiam constantemente a sua ruborização, a forma doce e recolhida que
se manifesta ao ser pega despercebida, entretanto pouco notam que, talvez, se
fosse menos acanhada, desobstruiria uma amorfa limitação: a de se conter. Não
se contendo, todo o brilhantismo intelectual, de alma e espírito, teria deveras
espaço para criar proporções revolucionárias, pois a revolução a acompanha sem nem
mesmo desejar atraí-la. E a outra coisa também atrai: a morte. Desde o seu
nascimento, a Poetisa chorara não apenas para a mãe, para o pai ou para a vida;
contemplara a entidade do fim com os olhos cândidos de uma criatura que em
nenhuma instância compreenderia o encontro mortal que tivera, e, salva pela inocência
do nascimento, fora poupada da insanidade. Não se desgrudam das marcas todos
aqueles que foram decretados, misteriosa e assiduamente, como os espécimes das
experimentações fúnebres, nem em uma vida inteira, quem dirá diante do passamento.
A eles é garantido o direito de presenciar uma passagem e não somente um desmanche,
conferidos uma desmedida oportunidade para escancararem os exatos olhos da vez em
que foram visitados e enxergar o espaço sagrado e inexpressável da eternidade.
Não fora diferente à Poetisa, tampouco lhe provocara alterações em suas
expressões, exigências ou pretensões, visto que não lhe incomodava ser, também,
morte, ou fazer parte dela; acolhia-a, pois muito é bondosa e compreensiva, até
com as entidades naturais, e que mal faria se não desejassem o seu auxílio se nada
podem recusar? Na verdade, são obrigadas, presas por suas próprias leis, a
fazerem o oposto: a aguardar rumos e finais em vez de ditarem caminhos ou
começos. Contudo, não apercebera, ela, que o rastro permeável da Morte é
ardiloso e se revela oportunamente em momentos de fraqueza mental, trazendo a
si uma mínima incógnita, que permeia, arrasta e se intensifica: e se eu for a
própria Morte?
Para os residentes, tamanha pergunta pode causar uma guinada
em suas mais intricadas convicções, na medida em que se instaura a dúvida da
autenticidade de sua alma, se ela é fabricada, inata, falsa ou monstruosamente
destrutiva. Questões como essas são agressivas e danosas para a saúde cognitiva
de um indivíduo, pois, com elas, um ser contesta a si próprio e se recusa,
anulando-se, conduzindo-o ao estágio da inexistência, onde não há morte nem
vida, há nada dentro de um nada, num invólucro metafísico que desafia qualquer razão
humana ou explicação sofisticada, um estado onde nem as máquinas quantificariam
e tampouco um mero animal se descolaria. Não tardara para que, em pouco tempo,
a Poetisa se considerasse morte, e não vida, e decidisse que a sua presença
sempre fora escuridão num refúgio iluminado e que a tudo engolia, tão acentuada
e superabundante. Mas débil, infelizmente, era a motivação desta suposição. A
escuridão é um estado ausente, livre de luz, mas somente é notada por causa
dela, logo não há como engolir luz. A luz se extingue sozinha ou por
manifestação de algo, e se nada é a escuridão, não pode tocar e manipular. O
que não compreendia, todavia, é que em vez de trevas era luz, como sempre
costumava ser, porém as individualidades sempre se negam. Brilhava, e não notava.
Contava com muitas outras virtudes, das quais um inveterado da sociabilidade muito
possivelmente se espantaria em vê-las, desconfiar-se-ia, igualmente, não
estando acostumado aos seres livres de malícia urbana ou altruistamente genuínos
— espantam-se precisamente porque no mundo dos humanos, e não dos alienígenas,
a astúcia deve ser um requisito nativo de qualquer sobrevivente. Pobre homens,
desvalorizam todas as características sublimes, pois não acreditam em suas
existências, ou em algo muito pouco, e enaltecem tudo aquilo que lhes causa prazer
sádico, que condenam na superfície, mas que, no fundo, almejam. Aquilo que
destrói, em todas as instâncias, a si e aos outros. É a valorização
misantrópica. E ela, a autodenominada morte, possuía tudo, menos as propriedades
de sua natureza, assim, não podia ser o fim das coisas quando muito ajudava a
concebê-las; seguramente nisso se compatibilizava com tremenda precisão: com o
vigor da vida.
Durou tempos, amadurecimentos, ansiedades e temores para
que, então, lobrigasse outra ultimação: poderia não ter sido tocada... e sim
vista, uma vez apenas, para então ser abandonada pela Mãe Morte e ser deixada
para a Vida. E o que teve, o que presenciou em vivência, fora tão exclusivamente
um azar. Não, com muita certeza não acreditava em sorte — se ambos são um —,
mas negar não inviabiliza a realidade de algo.
Conquanto, persistiu na ideia obstinadamente. Para ela, era
a única e inflexível explanação de seu ser, de quem era, de quem representava, de
como agia, de como reagia, de como atraía e espantava, de como vivia e de como
morria. Boba, certamente, mas aquilo que rejeitava por avocar uma identidade
usurpada, a famigerada e exaustivamente repetida vida, lhe apresentou um contraponto
súbito e arrebatador: o amor. Tanto o cultivou, idealizou-o, supô-lo e o quis,
que o esqueceu. Esqueceu que a ele não interessa a materialidade, a presença da
carne e a efemeridade das substâncias que existem; o amor transcende o
material, o físico, o metafísico, e assemelha ao divino. Independe de
inexistência, morte ou vida para perdurar, embora seja um dependente da criação.
E para quem ou o que observa, há, de fato, uma necessidade genuína de saber a
origem? No que isso afeta, afinal? Se uma vez criado, o máximo que se tem é a
desconstrução?
Testemunhou, em conclusão, todas as etapas do Universo e estacou,
boquiaberta e sobremaneira entusiasmada, em uma delas. A etapa livre de todas as
peculiaridades de um ser: a inexistência. A desprovida de essência, de
contemplo, observação ou amor; desnutrida de todas as palavras descritivas, de
todas as letras que tanto ama e que tanto expressa. Um paradoxo ambulante, que anda,
dita, questiona, se amarga... e escreve. Diante de enorme incoerência,
recebeu um pedaço de papel dobrado em várias voltas, num tamanho tão pequenino
que nem sequer parecia capaz de suportar conteúdo ou palavras. Temerosa, abriu,
enquanto a narrativa de seu Tratado tomava forma inquietante e
metalinguística e se sobressaltou, num olhar profundo e pálido, terrificada
pela seriedade, exatidão e paixão nas breves linhas a seguir:
Ditava, inalterada, a natureza de sua angústia:
“Volito na morte, pois a morte terei de ser, visto que
aquilo que escureço com a alma
De imediato morre incapaz de retroceder.
E não posso ser vida, se ceifo com desdém os meus vislumbres de
alegria.
Como poderia, enfim, regurgitar felicidade num devaneio?
Como acharia, então, o escapismo da minha condição enquanto
com dor desvaneço?
Está previsto para os santos a magnânima morte como derradeiro
fim
Ou a vida, para a entidade morte, sopra como um desmedido
inferno de enfins?
Temo esbarrar com a solução, de enraizar num revide do acaso
Para rejubilar os egoísmos de meu espírito insaciado,
Para saciar a mínima vida no resoluto breu de um chamado,
E retombar despida no abisso, nas profundezas da tão dita e
repetida,
Cuja natura formosa extasia alegoria
Subitamente, contudo, mergulho, de perfil astuto e resoluto
Almejo encontrar não dois nem vinte fragmentos, e sim
centenas de subitâneos momentos
Que me levam ao anteceder da morte, e da vida, à
inexistência
A fim de, no paralelo da escolha paradoxal, uma vez me despontar
maliciosa e imoral
Mas não imoral e maliciosa, e sim disposta, de alma, a
receber uma profunda e reviravolta-proposta
Novamente viva, e não morta,
Igualmente ardente e amorosa,
Chorosa, manhosa, nossa.
Aguardando, incuravelmente, o romantismo que a inexistência eternamente
mostra:
Numa tardança dramática, a tão possessiva fala:
Amor, você quer namorar comigo, para o tudo ou para o nada?
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