quarta-feira, 12 de junho de 2019

Tratado da Poetisa da Morte



Ela, a poetisa da morte, possui um prenome e dois sobrenomes, não obstante abstém-se deles para lograr uma curiosa nova forma de designação; que a ela muito agrada, visto que sua identidade real, embora muito construída historicamente e de fato possua beleza, causa-lhe recordações funestas. Obviamente, neste específico caso, há muito pode se culpar a sua sensibilidade, não de forma total, entretanto. Para se ter algo contra um nome, antes se necessita estruturar uma conexão emocional: apenas elas podem provocar receios em algo que, em primeiro momento, não deveria atormentar, pois o quão ameaçadores podem ser se representam apenas uma fração social do seu ser? E ninguém é definido por nome, afinal. Somos definidos, e depois etiquetados. Portanto, a sua alta sensibilidade em muito deve ter influenciado em sua procura — ou arquitetura — por um recém-adquirido chamado. Poetas, especialmente os mais sensíveis, como a da morte, se incomodam facilmente com a vida, e vivem flertando, num jogo demasiadamente revolucionário, com a morte — não em amarração física (já que a eles isto pouco importa), mas espiritual. Celebram o efêmero num saúdo com a existência, e, mesmo assim, conseguem ser grato por suas vidas e desejá-las como os mais veemente otimistas. E nisso, talvez, têm uma dificuldade: quando os sensíveis se aproximam da Morte, ou tornam-se Ela ou perecem diante dEla, muito mais do que as pessoas comuns! E hei de deixar claro que não são comuns; não são e não podem ser classificados de tal maneira, seria injustiça para com os geniais excluí-los do espectro e colocá-los como seres medíocres. Não se enamora intensamente a destruição de todas as coisas sem antes possuir uma força extraordinária. Que vivência, em sã consciência, teria uma relação intimista com aquilo que se encerra? Por que são imanentes e são dois estágios de uma só coisa? Sendo assim, poder-se-ia afirmar, numa enorme ressalva, que todo indivíduo, por compartilhar a tal característica, não seria comum, mas genial. E é aqui, precisamente aqui, onde ocorre uma reviravolta em relação à generalização, na qual, agora pouco, cometemos juntos: qualquer substância viva precede o seu fim, isto é correto, contudo, aqueles que têm filhos com a Morte são pertencentes a algo que sobrepuja o senso comum, temporal e espacial, dos comuns — são os poetas da eternidade, os amantes do incompreensível, infinito, inexorável e impoluto vazio. Vazio que reside somente na relação recôndita com o estado da inexistência. Não se compreende ao certo o que inicia esse relacionamento tão morredouro, o que sabemos é: não se escolhe. São por serem o que são, pedaços destoantes do líquido preto e insosso chamado de Morte, e nem por isso podemos atribuir predestinação. Tudo que existe, certamente, possui o destino fatídico, mas este é o limite da Morte; apenas determina as coisas que falecerão, porém não cria, e se não cria, não se antecipa, se julga após, o que é muito mais fácil na lógica universal. Acredita-se, então, que justamente por isso a Poetisa declara mais amor à sua própria criação de um vocativo do que o que lhe foi imposto naturalmente. Desta forma, são detentores inatos! Nem todos dispõem de bons espíritos para com suas naturezas, o que não quer dizer que as abomina; não, não o fazem, amam, também, e as veem de maneira deveras melancólica. Quando desejam fortemente a vida, não esquecendo, evidentemente, de criticá-la, são aniquilados pelas raízes que o conceberam — uma metafísica até acima da matéria mortal, considerando que ela não pode parir. E o que está sobre a morte pode causar, sem sombra de dúvidas, uma traiçoeira insanidade. 

Evidencio, assim, que a Poetisa vivera uma infância de tamanho sabor acre; por um lado existira em um momento onde a ingenuidade mental intensificara todas as partes de esperança e aprazimento, como seguramente vivem as almas mais moças perto de seus pais e de seus irmãos; por outro, tocada pelo dedo seleto de sua Mãe, experimentou, tão prematura e pura, um inferno de natureza covarde e abominável pelas entidades máximas, o qual em nenhuma forma a destruiu. Prova-se primeiro o inferno para, em deleite divino, tocar o paraíso. Nenhum paraíso, todavia, é livre de mal e nem dos maus — e deveria. Isso certamente a introduziu para a adolescência numa puberdade intensamente mais veloz e extemporânea, causando dois possíveis efeitos: o amadurecimento precoce, cuja potencialidade intelectual brilha de tal maneira que nem o mais encravado esforçado adquiriria, ou o envelhecimento de estados duplos, aquele onde se vive novo num corpo velho. Não conseguira, por conseguinte, evitar a condição inseparável daqueles que alcançam, antes dos outros, maturescência, ou seja, a solidão. A solidão humana; visto que os seres humanos são terríveis, socialmente, em simpatizarem com os indivíduos que os deixam para trás, de uma maneira ou outra, sem investigarem os agentes, sem conduzirem as razões e os fundamentos, mas julgando precipitadamente, com o ego e a inveja, a capacidade brilhante de outrem, a qual evidentemente se explica e se tem origem. De início a machucara, afinal nascera como um, nada obstante notou que não precisava de humanidade, que, para ela, era indiferente se se comunicava como pessoa ou se se parecia com um homem; não carecia de qualquer traço. Admira-os, é verdade, pelo menos os selecionados e importantes, porém não entoa a mesma nota. Era, como muito dissera, uma alienígena num mundo abarrotado do espécime humano, residindo como forasteira no lugar que tanto a encantou e a fez desejar cultivar amor. Muitas vezes questionou se para amar alguém é necessário, antes, habitar o exatíssimo universo, e que se era de uma espécie diferente, mas apaixonada por outra, sofreria de incompreensão ou rejeição instintiva. Mas, querida Poetisa, você superestimava o seu disfarce. Não eraera seu desejo, de corpo e osso. Para gostar, ou amar, basta apenas sentir — até os alienígenas sentem, e você não era um, se sentia como um. O sentimento, apesar de muito incompreendido, demasiadamente simples é; é, finalmente, universal e toda espécie sente. Não deveria ser tratado com inteira complexidade quando com facilidade pode ser verificado, em muitos moldes.

Ao chegar no degrau que antevê o início do estágio adulto obteve, enfim, uma explanação de vida, para verdadeiramente começar o desenvolvimento existencial, o que se declara como óbvio numa perspectiva lógica, sendo que nenhuma alma tem mais liberdade senão no afastamento da ingenuidade e da responsabilidade jovial, na rebeldia e na exploração. A curiosidade infantil se maximiza, a revolução do espírito de adolescente se instaura solidamente, mas conforma-se com as barreiras impenetráveis ou as indisposições individuais. Aqui, em específico caso, estamos muito próximos da personalidade. Ela também estivera. Conhecera, agora num tempo em que as pessoas tradicionais conseguiam se manter minimamente abeiradas, um importante marco, um que afetaria o seu futuro de intrigante maneira. Quando nos deparamos com a ascensão da idade, a inseparável contagem humana para se medir a efemeridade das coisas que residem no cosmos, somos imediatamente extasiados com um divisor de águas, que aos poucos, ainda que muito invisivelmente, se faz de apresentação abrupta, uma parede que guia e sinaliza para que não aconteçam colisões, e sim desvios. Assemelha ter tanta naturalidade! Pois despontam rigorosamente em etapas de nossas vidas, em divisões de vinte, geralmente, quase que a rigor, para promover uma mudança existencial em cada ser que ouse se manter vivo. Apercebemo-nos, íntimos e reservados, de que ainda somos animais — espirituais e artistas —, que sem a caça somos caçados sem nem sequer exigir a existência de um predador! Tão somente esta rocha perambulante é suficiente para matar os seus filhos terrestres. Na fome, a Poetisa notara: o passado, imensuravelmente agridoce, não me é mais alimento, o presente não me oferece as mesmas fontes alimentícias — e aqui, mais uma vez, falo das refeições que não meramente o corpo consome, mas, também, a alma! — e do futuro, o que posso obter? Posso obter algo; decerto, qualquer um, alienígena ou humano, cachorro ou leão, lobo ou lagartixa, pode cobrar uma parcela do seu lar — lar, mais tarde percebeu, que era igualmente seu, e não uma exclusividade dos homines sapiens. Concluira, por fim, pertencer às letras. E, solenemente, inicio o Tratado da Poetisa da Morte:

Tratado da Poetisa da Morte

A Poetisa da Morte possui um prenome e dois sobrenomes, não obstante abstém-se deles para lograr uma curiosa nova forma de designação. Não posso principiar o meu tratado sem citar uma particularidade importantíssima para a segurança de meus dizeres, de meu eventual monólogo: a Poetisa é essencialmente, num resumo definitivo, brilhante com as letras e com a vida, tão mais do que o modesto narrador de agora. É, também, muito tímida para se expressar com a força e a virtualidade de uma voraz apaixonada pela arte da expressão, da eternização literária, embora anseie profundamente ser capaz de fundar as mais sublimes, nobres e elegantes composições de palavras! Teme, portanto, ser incapaz de corresponder as expectações em torno de seu cultivado modo de vida, pois ávida leitora se tornara e as páginas se transmutaram em material alienígena, como muito se declarara, a fim de serem uníssonas para com a sua leitora. Elogiam constantemente a sua ruborização, a forma doce e recolhida que se manifesta ao ser pega despercebida, entretanto pouco notam que, talvez, se fosse menos acanhada, desobstruiria uma amorfa limitação: a de se conter. Não se contendo, todo o brilhantismo intelectual, de alma e espírito, teria deveras espaço para criar proporções revolucionárias, pois a revolução a acompanha sem nem mesmo desejar atraí-la. E a outra coisa também atrai: a morte. Desde o seu nascimento, a Poetisa chorara não apenas para a mãe, para o pai ou para a vida; contemplara a entidade do fim com os olhos cândidos de uma criatura que em nenhuma instância compreenderia o encontro mortal que tivera, e, salva pela inocência do nascimento, fora poupada da insanidade. Não se desgrudam das marcas todos aqueles que foram decretados, misteriosa e assiduamente, como os espécimes das experimentações fúnebres, nem em uma vida inteira, quem dirá diante do passamento. A eles é garantido o direito de presenciar uma passagem e não somente um desmanche, conferidos uma desmedida oportunidade para escancararem os exatos olhos da vez em que foram visitados e enxergar o espaço sagrado e inexpressável da eternidade. Não fora diferente à Poetisa, tampouco lhe provocara alterações em suas expressões, exigências ou pretensões, visto que não lhe incomodava ser, também, morte, ou fazer parte dela; acolhia-a, pois muito é bondosa e compreensiva, até com as entidades naturais, e que mal faria se não desejassem o seu auxílio se nada podem recusar? Na verdade, são obrigadas, presas por suas próprias leis, a fazerem o oposto: a aguardar rumos e finais em vez de ditarem caminhos ou começos. Contudo, não apercebera, ela, que o rastro permeável da Morte é ardiloso e se revela oportunamente em momentos de fraqueza mental, trazendo a si uma mínima incógnita, que permeia, arrasta e se intensifica: e se eu for a própria Morte?

Para os residentes, tamanha pergunta pode causar uma guinada em suas mais intricadas convicções, na medida em que se instaura a dúvida da autenticidade de sua alma, se ela é fabricada, inata, falsa ou monstruosamente destrutiva. Questões como essas são agressivas e danosas para a saúde cognitiva de um indivíduo, pois, com elas, um ser contesta a si próprio e se recusa, anulando-se, conduzindo-o ao estágio da inexistência, onde não há morte nem vida, há nada dentro de um nada, num invólucro metafísico que desafia qualquer razão humana ou explicação sofisticada, um estado onde nem as máquinas quantificariam e tampouco um mero animal se descolaria. Não tardara para que, em pouco tempo, a Poetisa se considerasse morte, e não vida, e decidisse que a sua presença sempre fora escuridão num refúgio iluminado e que a tudo engolia, tão acentuada e superabundante. Mas débil, infelizmente, era a motivação desta suposição. A escuridão é um estado ausente, livre de luz, mas somente é notada por causa dela, logo não há como engolir luz. A luz se extingue sozinha ou por manifestação de algo, e se nada é a escuridão, não pode tocar e manipular. O que não compreendia, todavia, é que em vez de trevas era luz, como sempre costumava ser, porém as individualidades sempre se negam. Brilhava, e não notava. Contava com muitas outras virtudes, das quais um inveterado da sociabilidade muito possivelmente se espantaria em vê-las, desconfiar-se-ia, igualmente, não estando acostumado aos seres livres de malícia urbana ou altruistamente genuínos — espantam-se precisamente porque no mundo dos humanos, e não dos alienígenas, a astúcia deve ser um requisito nativo de qualquer sobrevivente. Pobre homens, desvalorizam todas as características sublimes, pois não acreditam em suas existências, ou em algo muito pouco, e enaltecem tudo aquilo que lhes causa prazer sádico, que condenam na superfície, mas que, no fundo, almejam. Aquilo que destrói, em todas as instâncias, a si e aos outros. É a valorização misantrópica. E ela, a autodenominada morte, possuía tudo, menos as propriedades de sua natureza, assim, não podia ser o fim das coisas quando muito ajudava a concebê-las; seguramente nisso se compatibilizava com tremenda precisão: com o vigor da vida.

Durou tempos, amadurecimentos, ansiedades e temores para que, então, lobrigasse outra ultimação: poderia não ter sido tocada... e sim vista, uma vez apenas, para então ser abandonada pela Mãe Morte e ser deixada para a Vida. E o que teve, o que presenciou em vivência, fora tão exclusivamente um azar. Não, com muita certeza não acreditava em sorte — se ambos são um —, mas negar não inviabiliza a realidade de algo.

Conquanto, persistiu na ideia obstinadamente. Para ela, era a única e inflexível explanação de seu ser, de quem era, de quem representava, de como agia, de como reagia, de como atraía e espantava, de como vivia e de como morria. Boba, certamente, mas aquilo que rejeitava por avocar uma identidade usurpada, a famigerada e exaustivamente repetida vida, lhe apresentou um contraponto súbito e arrebatador: o amor. Tanto o cultivou, idealizou-o, supô-lo e o quis, que o esqueceu. Esqueceu que a ele não interessa a materialidade, a presença da carne e a efemeridade das substâncias que existem; o amor transcende o material, o físico, o metafísico, e assemelha ao divino. Independe de inexistência, morte ou vida para perdurar, embora seja um dependente da criação. E para quem ou o que observa, há, de fato, uma necessidade genuína de saber a origem? No que isso afeta, afinal? Se uma vez criado, o máximo que se tem é a desconstrução?

Testemunhou, em conclusão, todas as etapas do Universo e estacou, boquiaberta e sobremaneira entusiasmada, em uma delas. A etapa livre de todas as peculiaridades de um ser: a inexistência. A desprovida de essência, de contemplo, observação ou amor; desnutrida de todas as palavras descritivas, de todas as letras que tanto ama e que tanto expressa. Um paradoxo ambulante, que anda, dita, questiona, se amarga... e escreve. Diante de enorme incoerência, recebeu um pedaço de papel dobrado em várias voltas, num tamanho tão pequenino que nem sequer parecia capaz de suportar conteúdo ou palavras. Temerosa, abriu, enquanto a narrativa de seu Tratado tomava forma inquietante e metalinguística e se sobressaltou, num olhar profundo e pálido, terrificada pela seriedade, exatidão e paixão nas breves linhas a seguir:

Ditava, inalterada, a natureza de sua angústia:
“Volito na morte, pois a morte terei de ser, visto que aquilo que escureço com a alma
De imediato morre incapaz de retroceder.
E não posso ser vida, se ceifo com desdém os meus vislumbres de alegria.

Como poderia, enfim, regurgitar felicidade num devaneio?
Como acharia, então, o escapismo da minha condição enquanto com dor desvaneço?
Está previsto para os santos a magnânima morte como derradeiro fim
Ou a vida, para a entidade morte, sopra como um desmedido inferno de enfins?

Temo esbarrar com a solução, de enraizar num revide do acaso
Para rejubilar os egoísmos de meu espírito insaciado,
Para saciar a mínima vida no resoluto breu de um chamado,
E retombar despida no abisso, nas profundezas da tão dita e repetida,
Cuja natura formosa extasia alegoria

Subitamente, contudo, mergulho, de perfil astuto e resoluto
Almejo encontrar não dois nem vinte fragmentos, e sim centenas de subitâneos momentos
Que me levam ao anteceder da morte, e da vida, à inexistência
A fim de, no paralelo da escolha paradoxal, uma vez me despontar maliciosa e imoral
Mas não imoral e maliciosa, e sim disposta, de alma, a receber uma profunda e reviravolta-proposta

Novamente viva, e não morta,
Igualmente ardente e amorosa,
Chorosa, manhosa, nossa.
Aguardando, incuravelmente, o romantismo que a inexistência eternamente mostra:
Numa tardança dramática, a tão possessiva fala:

Amor, você quer namorar comigo, para o tudo ou para o nada?

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