terça-feira, 3 de março de 2020

Consciência Visceral


Às vezes, quando a quietude domina a sala e o barulho dos dispositivos ensurdecem os ouvidos com algazarra de vida, prazeres sonoros de tormento e expectação, tenho a apercepção de que, se eu enterrar os olhos com as pálpebras, conquistarei, estranhadamente, uma iluminação definitiva, que causará estremecimento em meus órgãos e os deixará saltitantes de esperança ansiosa (aquela responsável pela aceleração cardial e pela diminuição da afirmação do presente). E aí sorrio, ergo-me da cadeira, danço como um desgraçado e até rodopio de alegria e de conquista! Movendo a boca como um cantor, o corpo como um ator; aproveitando-me do ápice de comoção. Não sei, nesse momento conversado, pelo que eu danço, ou pelo que desejo ou do que se trata tamanha iluminação; contudo ela é definitiva, isso eu sei, portanto devo prosseguir crendo em sua salvação. Devo alargar os lábios num sorriso glamourizado, elevar os dedos em prece, dar cambalhotas de agradecimento (a quem, mesmo?) e acreditar em meu instintivo resgate. Bem, de fato é um sentimento engraçado — que não nego risadas a ele —, pois devo muitas de minhas maiores frustrações para o bendito mal-dito desgraçado. O safado, com a total permissão do uso informal desta palavra, tem o desfastio de existir justamente para a concepção retardada de sua própria erroneidade. Como assim? Para explicar não me leva muito tempo: a iluminação é real, de verdade, mas é um artifício psicológico para nutrir inseguranças, procrastinações, atrasos e irresponsabilidades. Toda revelação de vida, ainda mais quando revelada num momento de demasiado tédio e trivialidade, tem uma natureza ou revolucionária e devastadora ou maldosamente enganosa. Você a tem, por um segundo acredita que a sua existência foi, por um toque de Deus, acertada e que nada mais há com o que se preocupar. Agora você possui a motivação das estrelas, a fúria de uma explosão cósmica — sem notar, no entanto, que tudo aquilo que exerce uma enorme força geralmente se destrói para gerá-la. E não haverá nenhum toque santificado o qual eliminará todos os desgostos e insatisfações de um ser. Veja bem... por um lado eu não estou afirmando que o tédio não possa, efetivamente, conceber uma revolução. Ah, não, muitas vezes ele é, sim, o progenitor de tal potência. Não poucas, também, estará associado ao relampejo de definição. Mas, grande, como pode acreditar em guinadas severas, onde, sentado ao assento ramificado, teve mudanças de espírito tão brutas e viscerais, onde se eriçou, onde se pôs a gargalha intensamente, se todas as vezes em que você mudou não se percebeu? Diga-me, sinceramente, como esperar uma reviravolta de consciência se você está viciado em carne e consciência, ao mesmo tempo?

Agora um apelo à natureza: está viciado em carne por causa da consciência — ou tornou-se dependente da consciência para justificar o vício na carne? Porém, falando em anedotas, talvez estejamos todos, por natureza, viciados em matéria, e, com a evolução do indivíduo, fomos aos poucos aprendendo a construir supressões inteligentes e contratuais para evitar o desperdício prematuro do corpo. Se é dedicado a isto, desde à fase pueril, crescerá aos retalhos. O quanto vale, portanto, a autenticidade dos esforços para evitar uma compulsão descabida e um eventual destroçar da alma, da moralidade, do comprometimento, do caráter? Muito, eu diria, e seria capaz de valorizá-la a um patamar de nobreza — naquele velho, comum sentido, mesmo, de estabelecer um ato digno. Afinal, não seria todo ato de nobreza algo irresistivelmente insustentável à longa caminhada, desfalecendo pela sua incapacidade de consistência, mas de enorme peso, ao acontecer? Herdamos a nobreza dos maus, como podemos ser bons em praticá-la? Sem embargo, eu ainda sucumbiria a ela, se fosse capaz, para evitar o julgamento de quem domou a carne com a consciência. Seria nobre, ainda que significasse ser mau, porque o âmago do seu sentido é invertido diante da repetição comum. Sou, por conseguinte, sujo por aderir às minhas avarezas caninas, por não resistir aos meus faros obscenos, visto que, uma vez posto a consciência no mais alto patamar dos animais, qualquer degrau abaixo resulta numa bestialidade que deve ser enjaulada por pauladas e crueldade. E se eu pudesse pontuar uma tremenda incógnita, diria: você não para pelo coração fraco, contudo o deixa mais débil a cada não-resistir, esforça-se pelo contra-sentimento, mas só tem sentimentos — como ainda espera por uma iluminação definitiva?

Então... novamente sob o sossego audível do local, a balbúrdia do plástico emborrachado, você tem outro assombro. Desta vez, não uma iluminação — um afogamento. Uma inundação de obscuridade resoluta, que imerge os órgãos e causa calafrios, trocando os arrepios, sem prazeres e anseios, e com a apercepção de que, se enterrar os olhos com as suas pálpebras, nunca mais vai abri-las. Contrai os lábios, entorta-se no assento e cai como um verdadeiro desgraçado em sua particular miséria repetitiva, em seus avanços imperceptíveis, em seus planejamentos idealistas e irreais, que subsistem por segundos. Apesar de suas semelhanças às vezes em que se põe num otimismo divino, o afogamento resoluto em poucas circunstâncias engana, pois, por estar associado ao sofrimento inequívoco, fora arquitetado para dois outros possíveis resultados: ou o faz sofrer por azar, a fim de meramente acumular ânsia ou o faz sofrer por sua natureza da verdade — que, por lógica, é uma brecha autêntica para a mudança perseguida. Pois imagine só: um ser humano só pode se elevar durante a mais terrível das dores, sendo que dor estimula a evitação (e é um cenário inabitual, afastado da monotonia). Torna-se integralmente capaz de mudar pelo estímulo do medo. Evitamos a dor, o medo, pela evitação de que o corpo se destrua prematuramente. E como sabemos o que define o tempo e a prematuridade do corpo? Pelas médias? Mas você ainda se afoga... (não se esqueça do exórdio da resolução), e não pode se aproveitar de nenhuma brecha morto, então para que reserva essa força de esperança?

Então vamos à piada:

É num infinitesimal flagrante de teofania que a tensão, por fim, ricocheteia com bestialidade na carne vil da pessoa que a nega. E impregna e arrebata a consciência, sua improdutividade, com o pensamento ambivalente de aniquilação. Aniquilação pois, nesse instante de indiferença, nota-se que a matemática já prevera, há muito tempo, não falhar por azar; falha por se aferrar a uma previsão de louco. E assim se assemelha o homem ao louco, visto que está conscientemente investindo em valores outrora calculados, quando podia simplesmente cessar tal atividade, tal insistência, para se fixar em outra estranha obsessão, seja lá o quanto valesse, mesmo que em início não o desse nada. É  loteria depender do longo logro ou desejamos, apercebidamente, a prosperidade imediata? Não é, portanto, falta de iluminação pressupor otimismos, os quais não se inserem em qualquer perspectiva futura? Se fosse possível ter a frieza necessária para encerrá-los, sem apegos de dor, sem desesperos ansiosos ou sem ferir a preguiça de se comprometer, viveríamos mais felizes? E se o homem alcança o seu desígnio de ego, pode ser ele, em algum grau, contente com a conquista? Não desvendaria, em um centésimo de segundo, outro pulsar da egolatria e, então, se comprometeria a realizá-lo? Assim por diante, ad infinitum?

Então, para que serve essas idiotices esdrúxulas que tantos perseguimos, quase como uma tara sexual, quase enfeitiçada de ficção e alagada de desperdício biológico-temporal? Para ilustrar a meta-percepção de que somos criaturinhas autoconscientes de seus vícios, de suas luxúrias e de seus escapismos resplandecentes? Pois aí está uma meditação de gaiato: que diabos temos para, com fúria, defendermos tanto nossos devaneios? Substancialmente não é isso que fazemos para com os outros? Rasgamos memórias, pactos, códigos, relações, para cismar inflexivelmente com a visão de uma entidade destroçando nossas imagens de um jeito que não idealizamos e, por conseguinte, criar a ópera perfeita? Se não o fizéssemos, seríamos escravos autodeclarados da piada da vida. Seria chacota! E acredite: palhaços execram o uso de suas próprias imagens como o ponto da anedota. Sabem por quê? Porque a graça da chacota é, primariamente, não ser a graça dela. Desta forma, rimos — mas sem que nos ofendamos.

O que é a vida senão uma irretocável humorista, fruindo de um das graças mais refinadas que a realidade poderia propor junto ao desdém espacial, que é o humor do cadafalso? Ah, como é precisa em contemplar cada possibilidade com uma revira-volta bem jocosa, acessando incomensuráveis recursos de metalinguagem, mnemônicos, de hipocrisia, de retornos e de repentinidade; deixando tantos e tantos de fora! E talvez tenhamos que ensaiar o gargalho junto a ela, para nos esquivarmos destes sentimentos de escárnio que ela nos provoca. Se de tudo ri, ainda que artificialmente, como existe o homem? De bem com a vida? Destruído, e rindo; não pouparia, da mesma forma em que usamos os devaneios, da veracidade das coisas? Precisaria o riso ser autêntico para valer? Ou o mundo somente aceita qualquer risada derivada de um sensação genuína de felicidade? Pois então onde encontraríamos uma risada verdadeira neste mundo?

É inteligentemente concebível ao homem rir enquanto angustiado e completo de desesperanças. Não residiria aí um gênero de humor conhecido? Obtido exclusivamente na mais densa e negrume situação, como um veneno — tão raro quanto um, tão revitalizante quanto um —, que, só nesta forma, pode curar, se ministrado decentemente? Mas a ciência laboratorial do corpo tem a precisão médica de um cadáver: e no momento que eclode a tensão causadora da risada terminal, cujo som ecoa tão desfalecidamente, toda a piada se transmuta num desastre de Pompéia. Apercebe, por fim, que nenhum final de anedota da vida pode ser vívido, quando todas as revira-voltas são as que te levam para o caixão. Rá rá rá! E do que um presunto cadavérico pode rir sem nem mais a mandíbula abre, senão por força de gravidade?

Resposta: de ter sido o tempo todo o final da piada.

Um comentário:

  1. Filhão, você é mestre! Sabia disso?
    Parabéns e nunca desista dos seus sonhos e objetivos.

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