terça-feira, 19 de janeiro de 2021

O Cão e o Osso Escondido na Casinha

zerochan


Ele não sabe o motivo pelo qual esconde o seu osso das mãos gordurosas dos outros, quando se pega com constância pensando que é meramente um item calcificado, um resto biológico de algo que uma vez viveu e morreu — assassinado, na maioria das vezes. Não obstante, protege este resto mortal com a sua vida e os seus dentes. Ameaça dilacerar os seus dedos se, por um motivo, trazê-lo a um centímetro perto de seu alcance! É a razão de vida dele, do cão, que resguarde a existência de seu osso, pois a ele simboliza o mais santificado significado de vivência. É a sua razão e, portanto, aquilo que lhe designa o tão marcado e explorado sentido das coisas-como-elas-são. Entenda que para lhe tirar o instrumento, e só assim banhá-lo de uma vez por todas à luz do sol da humanidade, deve antes subjugar; o cão, não o osso. Precisa mostrar a ele o mais pungente sentimento de desforra — é assim que o atacará em sua alma bestial — e, com violência, arrancar-lhe seu juízo, jogá-lo para o solo rígido e cinza e mostrar à fera a substituição imediata, que deverá ser de plástico, ou de borracha, fresca e barulhenta, com furinhos e cor vibrante. Só assim para o enganar da demência. Para fazê-lo pensar, por um rastro de reflexão: "do que adianta eu dedicar minha vida a este osso se tudo o que querem, logo depois da casinha, é arrancá-lo de mim? Para que vou mordê-lo se as carnes e nem os fiapos resistem ao trato do tempo? E dizem que se eu o engolir, mesmo mastigado, rasgar-me-ei por dentro, inteiro! Não seria mais canino me divorciar da guarda da única coisa que me ressoa um pouquinho importante de se manter, se todos que me olham de fora coçam os dedos para sacrificá-lo ao quintal fétido?" E assim damos ração, peças bonitinhas de cereal, coloridas ou monótonas, para acalmar a fúria indivisível do cão, desta forma o amargurado não morderá o próprio rabo por vingança e fará seu sangue mofar a estrutura de madeira. Cometidos à pena, acredito, é que inclinamos a isso. Para os habitantes do mundo, e não da casinha, embora todas tenham convenientemente a sua, estimula-se comiseração se abeirar amigavelmente do ser e vê-lo recuado, mortificado, de rabo entre as pernas, com o único intento de proteger uma coisa ínfima (mas íntima), a memória de cálcio de um ex-ser, com a mais extrema determinação.

Ah! E não está certo o maldito cão? Não protegeria você, com o empréstimo de sua amada mãe, aquilo que só quem lhe tira é a Dona Morte? Para o quentíssimo inferno terá de ir o indivíduo que ameaçar o seu osso, querido amigo, mesmo se para si é uma peça absurdamente inútil! Pois toda a terra é uma inutilidade quando fora de sua circundante e humana expressão de realidade, concebida com o egocentrismo herdado das raízes do mundo-meu-pois-sou-eu-quem-o-ver. Quem terá o tremendo mau-cárater para enfiar descabidamente o braço dentro do covil animalesco do cão que tem o osso como seu único pé na vida? Mastigue os ursos de pelúcia e queime a borracha redonda — tudo o que ele quer; tudo o que queremos, nós, os cães, são os nosso supérfluos ossos; são os nossos prediletos restos mortais, tenha vindo ele da perna direita de um homem do primeiro século ou da púrpura atmosfera da inexistência, nascida de nenhum átomo, imoral e remanescente! Está em nossa casinha, no inóspito canto negro de nosso minúsculo espaço — dali não sai! Dali só a Morte nos tira! Arraste-nos isso à vida mais infeliz de todas, do que nos importaremos? Sem o osso, a existência é só mais um acordar, um dormir, uma corrida cíclica ao brinquedo borrado, um gole quente de uma água empoeirada... Sem que nos deixe mastigar, quietos e apáticos, aquilo o qual declaremos peça irrevogável de significação, somos sequer animais, sequer concepções biológicas, sequer funcionalidades em um plano incoerente, mas moléculas quebradas, quantificadas, invisíveis; engolidas, sem dúvidas, pelo universo, porém apenas porque ele engole a tudo, e mesmo os não-seres devem ser, de alguma forma, considerados, nem que por força do pensamento, por choque de via!

E a doença, a parvovirose canina não tratada —, criada, na verdade, pelo arranco do osso — começa aos devastados espíritos quando estes fitam a vazia escuridão sem nem mesmo olharem para cima ou para dentro. Ao saberem que lhes foram roubado sua substância quintessencial, perdem a íntegra aura de enxaqueca de suas almas, de seu escuro interior assombrado, e não somente ficam perdidos: acontecem-lhe coisa pior. Aceitam o plástico. Deixam, também, aos poucos, o enfermo crescer. Ou talvez, como derradeira opção, aceitam a vacina na carne já morta; morta de sonhos, putrificada de nascença, como se uma inerência amaldiçoada fosse induzida no ventre de sua progenitora. Oras! Trocariam suas vivências pela preservação óssea de seu artefato sagrado! Dariam os seus próprios ossos pela segurança do seu! Quem o joga fora é inevitavelmente o Diabo! Quando não, os seus pais! Por isso os cães, nós, mordem desde filhotes: já estão se defendendo da vida, preparando a mordida para que, no dia em que alguém — pois uma hora o infrator aparecerá — ousar invadir suas casinhas, eles possam arrancar-lhe a carne da traqueia e até roubar o osso deste que os atacaram, a fim de ter dois. Jamais aproxime a sua mão de um cão medroso; ele tentará morder o seu pescoço, e não a sua mão. O medo emprenha todas as violências, ainda mais quando conscientemente justificadas como "o motivo pelo qual eu ladro". 

E o cão, no fim, teria mais medo do quê? De ferir o inumano violador, de ser sacrificado pela sua luta ou de ser castrado por desobediência? Nem a morte amedronta uma vida sem o osso. A ele, é tudo isto o que importa, no final do dia daltônico, sendo que já nascemos morrendo — e, sem ela, nossa parte, só alongamos esse processo miserável.

2 comentários:

  1. Filhão, no aprofundamento de todas as palavras desse texto maravilhoso, ao mesmo tempo, misterioso, podemos tirar muitos fundamentos! De modo geral, o contexto é forte e o cão, nesse caso, precisa ser adestrado um pouco mais, com gestos e palavras, que muitas vezes possam até dar a impressão da tentativa de arrancar-lhe o osso!

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