segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Ser Envelhecendo

zerochan

  Não à toa viemos chorando, desde o primórdio obscuro e afetuoso, desde o dia em que alguma-coisa nos colocou para fora de um ventre úmido e quente de uma estimada santidade autora chamada mãe, sem nem nos pedir permissão ou sequer nos dar uma chance de recusa. Mas é visível que nascemos gemendo, aos prantos: quem, afinal, foi o culpado por nos tirar da não-existência e, na base da pancada e da inserção, arremessar-nos neste mundo que até o diabo foi banido? Por Deus! Era necessário que houvesse tamanha e sem-vergonha punição para trazer a este mundo um danado de um ingrato? E este danado, que não teve o direito de escolha desde o princípio; que, pelo contrário, foi apenas empurrado várias vezes até ser concebido; cresceu. Cresceu, sem nem querer, e permaneceu vivo por muitos e muitos anos. Em virtude de talento observatório e razão para enxergar a tal mancha milagrosa e transcendental de uma vida que, de alguma forma, foi capacitada a se originar até mesmo sem ser encomendada, notou que, tudo bem, dava para tentar gozar deste pesadelo, nem que um pouquinho. “Por que não?”, indagou. “Posso ter vindo ou da inexistência ou da morte, pois uma vez não-vivo, devo ter alguma propriedade. Seja eu uma poeira, uma bactéria, um átomo divergente. E se não estava morto ou inexistente, então existia, mas não nesta forma. Talvez numa forma mais simplificada, inoculável, sem medidas ou espírito. Talvez eu fosse um pequeno componente de uma radiação interestelar, antes de chegar a ser um miserável de um feto. A questão é que… sou. E portanto nada a isso posso fazer exceto deixar de ser. Contudo, deixo de ser, as coisas deixam de existir. Se não existo, não posso observar. Se não observo, como posso atestar que, depois que deixo de ser, ainda há?”

   Por isso escolheu envelhecer, e não não-ser. Grande questão, contudo, é que envelhecer é muito mais árduo, fatigante, laborioso e confuso, visto que você tem de ser para testemunhar. E sem quaisquer tipos de “pule esta abertura”, temos de conviver com cada segundo existente. Não podemos avançar! Ensinam-nos, através dos aparelhos tecnológicos, que o ideal é poupar um minuto de seu tempo em virtude de uma escala maior, mas nos privam desta função onde realmente se haveria utilidade? Então, tendo que estar presente em cada presente neste presente de vida, as particularidades ingênuas e simplificadas do primeiro estágio de existência se tornam intensamente maiores, diversas e aleatórias, em um pico de estresse e ansiedade que se acumula de maneira composta, conforme se experiencia as outras conjunturas do jogo. Aos nostálgicos, as suas mais doces épocas são aquelas em que eles nem vivem mais. De certo! Somos ótimos fabricantes e produzimos memórias tão quanto consumimos carne de cadáveres para o jantar. E o teatro mental é sempre o mais glamoroso espetáculo, uma ode aos bons tempos — que foram horríveis. E deixam de ser horríveis, alguma hora? Talvez não. Mas é certo que são sempre belos e cinematograficamente iluminados na cuca que chamamos de mente; filmes da era dourada Hollywoodiana, onde cores e a falta delas se misturam em um homogêneo saudar saudoso. Saudosistas. Enfim, deixar de ser é fácil. Convenhamos, é fácil não ser. Ser é muito mais difícil. É preciso viver! E viver não é para todos. Pois não demora muito para que você vá percebendo que somente os vivos ativos — e sim, existem os inativos, ou deveria chamá-los de passivos? — podem, de alguma maneira, lograr dos benefícios de pertencer. Para comer, para festejar, para chorar ou para brincar. Para tudo que uma detestável existência prefira executar, neste universo de execução, há de ser “ativo”. Senão sofrerá de uma inércia tão esmagadora e angustiada, que acabará como eu: escrevendo sem propósito. 

   Assim como puxam a sua cabeça inocente e gorda daquele minúsculo espaço humano, o qual se expande, graças a Deus, não te contam, muitos anos depois, como diabos você faz para ser um vivo ativo. Seríssimo. Vem das cobras para ser largado às cobras. Não te ensinam; te catequizam com o mais profundo espírito empreendedor moderno. “Estude isso, seja isso, você verá como a vida é boa”. “Tudo virá ao seu colo como veio ao de Jesus”. Talvez porque Jesus já escolheu ser antes mesmo de ser! E a gente? Pobres bastardos, nós: fomos apenas arremessados sem dó nem piedade ao chão frígido do hospital. Ou quente, quem dirá? De certo fomos arremessados! Ou puxados impiedosamente por um par de luvas médicas! Não temos um evangelho ou um livro sagrado escrito para testemunhar o nosso terrível, e horrível e apavorante nascimento. Ninguém veio. Nenhuma estrela apareceu. Já estavam todas lá, mortas, distantes, inalcançáveis e não anunciaram nem sequer o tremeluzir de um novo espírito. Assim, marcamos nosso estimado dia de vinda. Não tão especial quanto gostaríamos, não é? De certo, de certo. Um pequeno número a mais a um conjunto a mais de algoritmos. Deste modo, para aqueles que provieram meio tortos de suas mães, com as cabeças um pouco desajustadas, e que começaram a ver neste mundo um conceito abstrato chamado arte, em vez dos numerais exatos que trazem o sucesso e a evolução da espécie não-convocada, não muitas coisas restaram. Pior ainda para os infelizes nascidos no tal “pais mais ao sul da América do Sul”, onde se come o pão amassado pela bunda de um velho. Não, os desafortunados que copularam com a ideia de produzir (e não executar) os interesses metafísicos dos resultados elétricos de uma massa abóbada — ao que me refiro? — só tem sofrimentos. Como executar aquilo que não é executável, mas concebido, da mesma maneira a qual acham que foram, em um ambiente onde a execução é o requisito primário para operar? Como podem, ridículas criaturas que eram rabisco de universo, fabricar inteligências? Fabricar coisas que geram coisas? Transformar o metafísico, o meta-ish, em propriedade, fórmula e essência, exatamente como fomos gerados? Além do ser, para o ser? 

   A enorme piada, esta qual nunca nos contam nem com a feitiçaria mais escabrosa ou a reza mais satânica, é que seu espírito está condenado ao martírio eterno e condenatório das pobres almas desadequadas de criatividade. Teu espírito, rogado de fortuna arte, nada mais é, para os degenerados dos algoritmos, um infortúnio; um desvio de dados; um outsider. E como a humanidade aprendeu a lidar com aquilo que não se adequa às suas religiosas normas? Ela o pune. Uma vez que a punição é exclusividade nossa, assim como a maldade, e apenas nós podemos executá-la. Por isso, de obviedade escandalosa, somos bombardeados com a catequese do empreendedorismo: “faça isso, reproduza isso, copie aquilo.” “Estude, estude muito.” “Estude para ser um médico. Estude para ser um advogado. Estude para ser um funcionário público.” “Você nunca será aquele”. “Isso é para outro mundo”. “Corra atrás enquanto é cedo”. “Isso não tem futuro”. 

   Mas sabe o que não tem futuro? Eventualmente? Você... e todos nós. Pois venho seriamente a pensar que por acaso não haja uma segunda vez e que não renascerei como um animal da floresta. Já é ruim demais ser atirado para o mundo uma vez; imagine duas, três, infinitas vezes. O que somos? Um gracejo de péssimo gosto de alguma-coisa que perdeu o controle do sistema? Consequentemente, do que adianta eu ser ou não ser aquilo que quero ser? O insucesso é assim um peso demasiadamente abominável? O que é a falha senão uma resultância daquilo que se tenta? Não posso? Não posso me permitir se arriscar em um destino que, por si só, é atrevido e pode me resultar numa vergonhosa morte (e de quem esta vergonha será, mesmo?), equilibrando-se assim o veredito da minha jornada? E assim envelheço, como todas as substâncias que são. Envelheço sem saber o porquê de estar, e sem compreender ou distinguir o porquê de precisar. E todos envelhecem comigo, mais cedo e mais tarde, e sem entender vou deixando de ser... para não ser. E assim como eu, todos, um dia, não serão.

   O meu verdadeiro medo é não ser mesmo sendo

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