sábado, 8 de julho de 2023

Abismo (e a Dificuldade de Pensar)

zerochan

   Para aquele que, dentro do quarto trancado, sempre narrava os fatos incorruptos em simultaneidade e em paralelo com as coisas-da-vida, o que significa o abatimento intelectual de seus pensamentos? A morte de sua narradora? O que deduz de um silêncio abissal, de uma opaca escuridão cognitiva, do qual o único ruído é o resultado de um esforço indescritível por parte e por conjunto? Onde o que se olha se volta e se funde, imobiliza-se, por fim morre? De certo a inércia me é um inimiga de longuíssima data. Talvez mais antiga que qualquer prospecção interna. A mim, já tem sido esta tortura há imenso tempo: convivendo com a futura visão de que minha narradora jaz moribunda, em derradeira agonia e aguarda somente a brisa de um suspiro vazio e melancólico em seu ouvido. Aquele leve e insinuado murmúrio, que anuncia, em brevidade, o seu término.


   Caso a minha companhia interna, a minha voz neutra e ociosa, venha a cessar, cesso eu junto? Morrerei se aquilo que dentro do oco fala, morrer? Ou me sentirei com a mais estúpida, catastrófica solidão? Tenho tido os únicos debates verdadeiros; sóbrios e doentios; com ela. Nada além dela. Pois todos os meus amigos já se foram. Ou cessaram e calaram-se, assim como o objeto próprio deste discurso ameaça fazer. E o que me resta, de verdade, é pouco. É bem verdade, contudo, que o pouco é milagroso, que é, em proporção e densidade, o bastante para suprir o muito, uma vez que o que se é muito não é medido por quantidade, mas qualidade; e exclusivamente por via desta qualificação, e não quantificação, que se estima um valor inerente a um objeto. Portanto, posso me abundar possuindo pouco, em quantia. Todavia, não se afortuna de nem uma, nem outra, se o valor primordial é zero. Se nada possui, não se logra de nenhuma adjetivação. Daí nasce o meu instintivo pavor: com a morte da minha balbúrdia mental, encaro, crua e visceralmente, o abismo.

   Não que já não estivesse eu imergido antes no tal buraco. Há total familiaridade nessa condenação particular. O cadafalso não assusta quem, por dentro, testemunhou algo pior do que deixar de existir — existir sem assim desejar. Longe disso, é o presságio de um alívio mortal, a fuga de um sistema condenador e punitivo. Afinal, de que adianta uma jornada sem companhia? Do que adiantar viver, sem testemunhar, sem testemunha? A que se compele não ter plateia, espectadores, de sua miséria? Como produzir sem antes ter algo que queira consumir?

   Compreendo, entretanto, que depois de tanto tempo falando, a minha voz já queira descansar e ir. E sustente-se no argumento de que agora seu receptáculo biológico encontrou atividade contínua, incessante, absurda e autoritária — e isso o tirará a verba de pensamento. Talvez sinta-se ela traída, esquecida e subvalorizada. Éramos, pois, inseparáveis, de tal modo que não houvesse um momento sequer de abrupta e longa pausa. De repente, na primeira experimentada vivencial, abstrai-me. Eu, não obstante, estou de acordo com a destinação proclamada. Torna-se mais fácil desta maneira; aceitar a sentença que lhe foi incumbida, sem nem mesmo conferir a autenticidade de sua justificação. Pois acontece, correto? Está em certa definição: a minha voz me abandona. E tenho muito medo do abandono! Sofro! Agonizo em saber que, aos poucos, retorno ao retorno, ao ponto enfático de quando tudo o que eu possuía era zero — e ela. E sem ela, conhecerei o horizonte onde para todas as coisas se converge o nada. A inércia, o parar. É esta irrevogável sensação de desamparo, de falta de estrutura humana, de ineficaz ferramenta afetiva. A inserção da solitude, provavelmente. Porque, para mim, basta a companhia de um segundo ruído. De uma segundo tom, que, mesmo de caráter ilusório, traga-me serenidade.  

   Como restauro as cordas vocais, mutiladas centralmente, em picotes e tiras, e à integridade trago-as de volta? Como, decepada ao chão, remendo seus pedaços para voltarem à iluminação? Preciso reconstruí-la literariamente, para, assim, vê-la novamente gritar? Atenho-me, então, finalmente, a um simplificado conceito:

   Não posso parar de falar. Senão destarte, dentro em pouco, calarei-me para sempre. E não tão-só uma voz morrerá.

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