sábado, 8 de julho de 2023

Inimizade

artist

   Entre o pilar de concreto do escritório, que se dispunha precisamente ao lado da minha mesa, pus os olhos em um maltratado papel, enfiado numa disposição quase impossível de se retirar. Se não fosse pelo breve reflexo da lâmpada sobre a superfície laminada do papel, eu jamais teria identificado-o. Laminado, pois alguém certamente escondera um panfleto de rua com algo escrito nele. Usando uma caneta, consegui tocá-lo pelas pontas e jogá-lo ao chão. Quando o peguei, notei de imediato de que se tratava de um papel antigo. Talvez de muitos meses. Ainda dentro, provavelmente, de um ano. Estava manchado, empoeirado e não rasgara por um milagre, uma vez que parecia ter absorvido umidade. Ter algo escrito ali, ainda, seria um achado surpreendente. E assim foi. Havia, de certo, texto em caneta azul. E não estavam manchados. Provavelmente ficaram em uma face do papel que estivesse contra a umidade. Era uma letra incisiva, legível e expressiva, desenhada em verdadeira paixão; comprimida ao máximo para caber naquele pequeno folder. Digo isso porque não era somente intensidade em expressão - o próprio conteúdo do papel exalava tal força. 

   Estava escrito:

   Estranhamente, naquele dia em que a conheci, para meia dúzia de curiosidade e de apatia, eu não tive nenhuma impressão absoluta. Não me permiti ter, pois àquilo não depositava fé, esperança ou compromisso. De que adiantava induzir destino num momento onde o mais alto desejo era rejeitar a proposta que o levara até ele? Assim, não consegui me levar a nenhum pensamento de prospecção, mas de resiliência. Pensava, no dia, em somente resistir aos confrontos inoportunos nos quais tinha me metido. Daí reside sempre o engano do primeiro encontro. O primeiro encontro é, de toda via, insignificante e inóspito; não oferece nenhuma multiplicidade determinante ou garantia de causalidade. O primogênito do acontecimento é, portanto, sempre ineficaz como condição única. Um demônio traiçoeiro. Pois se acumula. Não o primeiro, mas o segundo, o terceiro, o vigésimo, o centésimo. É o crescente alavancar das interações que mortifica. Disfarça-se de pequeno, pois é, de modo imanente, pequeno; contudo transmuta mais tarde. Deste menor encontro, passei a ter grandes outros. Conheci-a sem muitas maneiras ou aprofundamentos, muito pouco escapava. Era astuta, embora parecesse desvinculada. Aos poucos, abria-se. Ao mesmo tempo, parecia se restringir. Liberava menos do que o necessário, às vezes se expunha sem vergonha. Quando soava conhecida, era estranha e indiferente. Nada fazia sentido diante das duas faces que eu contemplava em homogeneidade, em trocas constantes a depender do humor. Era cínica, desenfreada, mas distante e ociosa. Repetia os mesmos vícios meus, e não cedia aos meus esforços intelectuais. Atacava-me, mostrava uma fúria recíproca, um intento angustiante, e eu revidava sutilmente, o que fazia-a encolher, fantasmagorizar, fugir.

   Naturalmente, nem mais considerava o primeiro encontro, ou quem eu ou ela éramos quando este aconteceu. Já não tinha mais importância, ao meu ver. Coisa do passado, que não acrescentava mais no presente, onde tudo era ridículo. Havia perdido, enfim, o entendimento lógico de previsão, pois começava a conviver com a imprevisibilidade. Não sabia com precisão, seja no início ou no fim do dia, se veria-a. E caso eu a visse, que tipo de interação eu teria naquele dia? Uma extraordinariamente divertida... ou uma de registro tão monótono, de caráter tão apático? Dependia do humor dela, eu acredito. Pois se tivesse tido um dia ruim, transformaria o meu em um. E não precisava muito para isso. Sabia, sem perceber, que os seus encantos a tanto haviam aprofundado em mim, de modo quase bestial, de natureza íntima e inocente, que um mero olhar torto entortava-me. E uma distância sepulcral que sancionasse, doía-me como ser partido em dois por mil quilômetros. Assim como dualizava esse comportamento, eu também permitia-me desferir duas composições minhas. Em simultaneidade, divertia-me a repulsá-la. Santifiquei-me de muitas formas, embora, por ocasião, assemelhasse mais com um demônio, em espírito e mente, à medida que mergulhava em uma abundância de desejos, possessividade e contemplo. A ela, restava o verdadeiro papel de santa, por dentro, enquanto fosse maligna em pessoa.


Mesmo assim, vi-me e não me arrependi."


   E nesta breve leitura, emocionei-me. Pois também me vi como o autor se viu. E não me arrependi de assim tê-lo testemunhado. A quem quer se isso fosse direcionado, ou o seu autor, eu torço para que a história tenha prosseguido, uma vez que o texto se mostra sem conclusão e incompleto. Ou talvez a intenção fosse justamente não sinalizar fim ou propósito... Mas se este texto aqui foi colocado, então houve quem o colocasse, e aqui trabalhou... ou trabalha.  Pus o papel de lado. E necessariamente pensei: a quem compele esse exercício mental, afinal? Se quem vive isso são duas pessoas que não eu? Se aqui reside este papel sem algo que o defina por inteiro, não há sentido em buscar mais.

Descansem. Acabou.

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