zerochan |
Desde pequeno, provavelmente na minha primeira instância de existência, em um lapso onde eu ainda enxergava o meu presente-atual como um adulterado sonho, e que no meu mais recente lembrar soa agora como um vago devaneio infantil, eu constatei que nasci para estar perpetuamente em companhia de mim mesmo — que ascenderei a todas as minhas fases humanas em integral e devastadora solidão, mesmo se em torno da vida eu encontre acompanhamento ou complemento. Entretanto, inicialmente, essa remota, precoce ideia nem sequer afligiu-me a imatura alma ou iniciou tormentos em sua substância. Em devida oposição, este veredito enigmático, quase sobrenatural, causou-me na verdade uma estranha atmosfera de conforto, pois conhecer na totalidade da previsão o meu destino só pode ser uma dádiva, e não um mal temível.
Afinal, é certo de que o meu viés manipulativo também se enraíza nas competências da minha jornada e, portanto, se conheço aquilo que está reservado para mim, posso de toda forma decidir antecipadamente a minha opinião sobre tal destinação — e, por consequência, a ação que tomarei. E se esta for negativa, garantirei um sofrimento permanente e brutalístico, uma vez que não se pode mudar aquilo que é impiedosamente predestinado. É como mexer em leis naturais, ou na aritmética, e esperar resultados abstratos e artisticamente apelativos. É incompreensível, no entanto, esperar que a solidão seja um resultado de natureza amarga ou de inerência do mal, como se fosse fruto da ausência da companhia, assim como as trevas são a ausência da luz ou o frio, a ausência do calor. Não, pois pode se sentir solitário mesmo atolado e pisoteado por uma multidão extrovertida de amigáveis vozes e companhias. Pode-se testemunhar o mais cruel isolamento até na companhia mais benevolente de Deus, visto que na permanência humana nunca se faz nada num conjunto celular. As nossas células estão sempre, inevitavelmente, num único receptáculo — e a transferência delas nada mais é do que uma simples expulsão para o nada, para de volta à nossa eterna residência. Os nossos átomos de rebeldia exclusividade pertencem a um grande esquema cósmico, datado de bilhões de anos, e mesmo assim são nutridos e cultivados por um infeliz ansioso, solitário e depressivo de qualquer espaço aleatório que esteja enfiado, o qual representa a mais efêmera quantidade de relevância.
Assim, logo cedo, eu soube do meu destino, aquilo que, para muitos, pode levar uma vida notavelmente longa para se compreender; quando esta não se encerra primeiro. E estava, de alguma forma, contente com a sua definição. Mas na alegria da minha antecipação também surgiu um sentimento de atroz oposição, como é de se esperar da nossa ambivalência. É uma inclinação catastrófica, dramática, de imediato glamour, que nos põe a propositalmente se posicionar contra aquilo que é estabelecido em magnanimidade pela natureza. É o nadar contra a correnteza pela mera possibilidade de se poder. E daí temos um princípio fundamental para entender que na lógica do desejo não se vence ao fazer o certo - mas indo contra. Desta maneira, começamos a tratar as circunstâncias de nossa solidão como uma entidade a ser combatida. E independente do quão correta ela esteja, e provavelmente está, temos o dever moral de destruí-la, pela mera possibilidade de se poder. E o que no passado era apenas o resultado da sua predestinação, torna-se a razão primordial da sua luta pela vida.
É desafiando as convenções modernas, em que todos enfrentam um estado latente e crônico de isolamento, apesar de terem estabelecido famílias, uniões ou prole, e vagarosamente se atolam em superstições, que podemos estabelecer procedimentos curiosamente excêntricos e aversos. E se a solução é imergir propositalmente na solidão para, então, alcançar o sentimento imaculado de companhia, de união, de uníssono de células, corpo e átomos? E se é preciso sacrificar todas as prováveis, hipotéticas companhias para, após momentâneo sofrimento de cinco ou dez anos, atingir o apogeu da sensação de, finalmente, viver em dois? De ter a conexão divina que transcende a predestinação e abrenha o caos, a entidade que elimina qualquer ordem e flerta com a infinidade? Temos a mesquinha concepção de que abdicar das experiências é um crime gravíssimo perante as leis hedonistas do mundo recente, sendo isto um ato infracional que apenas bobos, ingênuos e abusados cometem. E como podemos ter convicção disso? Avaliando-se em pareceres recentes, confiando com propriedade em suas conclusões, se mesmo os mais sábios e intelectualmente capazes humanos são projetos de natureza imperfeita, feitos para darem errado? Não vale, neste caso, tentar-se a ir direto para a nossa origem animalesca, simplista, e aperceber que embora instintivamente inclinados a seguir o fluxo, também somos recompensados indo contra ele? E foi somente da adversidade e do erro, da tentativa e da morte, que fomos capazes de sistematicamente evoluir e atingir o ponto glamourizado do intelecto, a fim de aferir, finalmente, o incoerente fato de só haver _mentos_ por ele, o intelecto, ter percepção de si próprio.
Então a autoconsciência da consciência é a progenitora das contradições dos desejos. Somente sabe-se que há uma vontade quando se é possível reconhecer o que é uma vontade. À vista disso, unicamente só é plausível vencer a solidão se a conhecê-la em íntimo caráter. E se ainda sim for uma batalha de perda iminente e derradeira, de sofrimento garantido e reservado, o final é irreverentemente o mesmo: a ausência da vida. Há, então, a urgência predefinida de se competir com o inevitável, mesmo se este tiver uma força implacável e afugentá-lo no fim de todas as coisas, tendo em vista que a jornada da batalha é intensamente mais vívida do que o seu resultado. Todos os resultados são definitivos, unilaterais e tão logo passam a existir não se prosseguem por mérito ou força própria. São consequências imóveis de ações contínuas. Resoluções finitas e emergentes. É necessário, do ponto de vista humano, revoltar-se com os sistemas, as predefinições, o que é declarado inalterável, para experienciar não somente liberdade, mas direito de existir. Que resolução indescritivelmente severa, maldosa e aversa aos critérios de um Ser Benevolente seria esta se, por último, não tivéssemos o mísero poder de, pelo menos, nos tornar rebeldes para com os parâmetros de nossas aventuras? É óbvio, contudo, que vagueamos tremeluzentes no fio do autocontrole; característica essencial de quem desafia a solidão. Não é apenas um fio estreito de finíssima qualidade e resistência — é o único divisor que assegura a fidelidade de sua escolha. Aquilo que acrescenta crédito, fidedignidade, moralidade para as razões. Mas engana-se quem acha que uma vez rompido o desgraçado do fio que não se pode construir um mais forte, entrelaçado, flexível. Pois vida alguma estreita-se em um único valor, em um só beco. E seria covardia morrer num espaço tão pequeno.
A solidão tem dessas: ela te mata antes mesmo de você notar. Em função disso, é um dever de todo solitário resistir e, na ambivalência que o sobra, lutar pela sobrevivência de sua espécie, da mesmíssima forma como todos os dias receamos amedrontados finalizar a vida. A morte assusta, tal qual a solidão, contudo ambas provêm o mesmo tipo de conforto: estar eternamente sozinho.