sexta-feira, 24 de novembro de 2023

O Sentimento Imaculado de Companhia

zerochan

Desde pequeno, provavelmente na minha primeira instância de existência, em um lapso onde eu ainda enxergava o meu presente-atual como um adulterado sonho, e que no meu mais recente lembrar soa agora como um vago devaneio infantil, eu constatei que nasci para estar perpetuamente em companhia de mim mesmo — que ascenderei a todas as minhas fases humanas em integral e devastadora solidão, mesmo se em torno da vida eu encontre acompanhamento ou complemento. Entretanto, inicialmente, essa remota, precoce ideia nem sequer afligiu-me a imatura alma ou iniciou tormentos em sua substância. Em devida oposição, este veredito enigmático, quase sobrenatural, causou-me na verdade uma estranha atmosfera de conforto, pois conhecer na totalidade da previsão o meu destino só pode ser uma dádiva, e não um mal temível. 

Afinal, é certo de que o meu viés manipulativo também se enraíza nas competências da minha jornada e, portanto, se conheço aquilo que está reservado para mim, posso de toda forma decidir antecipadamente a minha opinião sobre tal destinação — e, por consequência, a ação que tomarei. E se esta for negativa, garantirei um sofrimento permanente e brutalístico, uma vez que não se pode mudar aquilo que é impiedosamente predestinado. É como mexer em leis naturais, ou na aritmética, e esperar resultados abstratos e artisticamente apelativos. É incompreensível, no entanto, esperar que a solidão seja um resultado de natureza amarga ou de inerência do mal, como se fosse fruto da ausência da companhia, assim como as trevas são a ausência da luz ou o frio, a ausência do calor. Não, pois pode se sentir solitário mesmo atolado e pisoteado por uma multidão extrovertida de amigáveis vozes e companhias. Pode-se testemunhar o mais cruel isolamento até na companhia mais benevolente de Deus, visto que na permanência humana nunca se faz nada num conjunto celular. As nossas células estão sempre, inevitavelmente, num único receptáculo — e a transferência delas nada mais é do que uma simples expulsão para o nada, para de volta à nossa eterna residência. Os nossos átomos de rebeldia exclusividade pertencem a um grande esquema cósmico, datado de bilhões de anos, e mesmo assim são nutridos e cultivados por um infeliz ansioso, solitário e depressivo de qualquer espaço aleatório que esteja enfiado, o qual representa a mais efêmera quantidade de relevância.


Assim, logo cedo, eu soube do meu destino, aquilo que, para muitos, pode levar uma vida notavelmente longa para se compreender; quando esta não se encerra primeiro. E estava, de alguma forma, contente com a sua definição. Mas na alegria da minha antecipação também surgiu um sentimento de atroz oposição, como é de se esperar da nossa ambivalência. É uma inclinação catastrófica, dramática, de imediato glamour, que nos põe a propositalmente se posicionar contra aquilo que é estabelecido em magnanimidade pela natureza. É o nadar contra a correnteza pela mera possibilidade de se poder. E daí temos um princípio fundamental para entender que na lógica do desejo não se vence ao fazer o certo - mas indo contra. Desta maneira, começamos a tratar as circunstâncias de nossa solidão como uma entidade a ser combatida. E independente do quão correta ela esteja, e provavelmente está, temos o dever moral de destruí-la, pela mera possibilidade de se poder. E o que no passado era apenas o resultado da sua predestinação, torna-se a razão primordial da sua luta pela vida. 


É desafiando as convenções modernas, em que todos enfrentam um estado latente e crônico de isolamento, apesar de terem estabelecido famílias, uniões ou prole, e vagarosamente se atolam em superstições, que podemos estabelecer procedimentos curiosamente excêntricos e aversos. E se a solução é imergir propositalmente na solidão para, então, alcançar o sentimento imaculado de companhia, de união, de uníssono de células, corpo e átomos? E se é preciso sacrificar todas as prováveis, hipotéticas companhias para, após momentâneo sofrimento de cinco ou dez anos, atingir o apogeu da sensação de, finalmente, viver em dois? De ter a conexão divina que transcende a predestinação e abrenha o caos, a entidade que elimina qualquer ordem e flerta com a infinidade? Temos a mesquinha concepção de que abdicar das experiências é um crime gravíssimo perante as leis hedonistas do mundo recente, sendo isto um ato infracional que apenas bobos, ingênuos e abusados cometem. E como podemos ter convicção disso? Avaliando-se em pareceres recentes, confiando com propriedade em suas conclusões, se mesmo os mais sábios e intelectualmente capazes humanos são projetos de natureza imperfeita, feitos para darem errado? Não vale, neste caso, tentar-se a ir direto para a nossa origem animalesca, simplista, e aperceber que embora instintivamente inclinados a seguir o fluxo, também somos recompensados indo contra ele? E foi somente da adversidade e do erro, da tentativa e da morte, que fomos capazes de sistematicamente evoluir e atingir o ponto glamourizado do intelecto, a fim de aferir, finalmente, o incoerente fato de só haver _mentos_ por ele, o intelecto, ter percepção de si próprio. 


Então a autoconsciência da consciência é a progenitora das contradições dos desejos. Somente sabe-se que há uma vontade quando se é possível reconhecer o que é uma vontade. À vista disso, unicamente só é plausível vencer a solidão se a conhecê-la em íntimo caráter. E se ainda sim for uma batalha de perda iminente e derradeira, de sofrimento garantido e reservado, o final é irreverentemente o mesmo: a ausência da vida. Há, então, a urgência predefinida de se competir com o inevitável, mesmo se este tiver uma força implacável e afugentá-lo no fim de todas as coisas, tendo em vista que a jornada da batalha é intensamente mais vívida do que o seu resultado. Todos os resultados são definitivos, unilaterais e tão logo passam a existir não se prosseguem por mérito ou força própria. São consequências imóveis de ações contínuas. Resoluções finitas e emergentes. É necessário, do ponto de vista humano, revoltar-se com os sistemas, as predefinições, o que é declarado inalterável, para experienciar não somente liberdade, mas direito de existir. Que resolução indescritivelmente severa, maldosa e aversa aos critérios de um Ser Benevolente seria esta se, por último, não tivéssemos o mísero poder de, pelo menos, nos tornar rebeldes para com os parâmetros de nossas aventuras? É óbvio, contudo, que vagueamos tremeluzentes no fio do autocontrole; característica essencial de quem desafia a solidão. Não é apenas um fio estreito de finíssima qualidade e resistência — é o único divisor que assegura a fidelidade de sua escolha. Aquilo que acrescenta crédito, fidedignidade, moralidade para as razões. Mas engana-se quem acha que uma vez rompido o desgraçado do fio que não se pode construir um mais forte, entrelaçado, flexível. Pois vida alguma estreita-se em um único valor, em um só beco. E seria covardia morrer num espaço tão pequeno. 


A solidão tem dessas: ela te mata antes mesmo de você notar. Em função disso, é um dever de todo solitário resistir e, na ambivalência que o sobra, lutar pela sobrevivência de sua espécie, da mesmíssima forma como todos os dias receamos amedrontados finalizar a vida. A morte assusta, tal qual a solidão, contudo ambas provêm o mesmo tipo de conforto: estar eternamente sozinho.

sábado, 8 de julho de 2023

O Homem Desesperado


zerochan

  O homem desesperado, tão cansado de se desesperar, roga por um fim antecipado, abrupto e bem concebido. Já exausto de sorrir para, em seguida, se abater; já demasiado turvo em se apegar, quando todas as coisas se desapegaram dele; o homem desesperado quer um encerramento para o seu desespero. Incinerar, em absoluto, qualquer grau de raiz e retroceder para o inexistente. Dessa maneira, pensa ele, tamanha dor no peito, cada pontada aguda de um coração descontrolado, deverá se tornar tranquilidade, libertação e submissão, deverá ser paz e anseio de adeus. Adeus, adeus pois não se despede da vida sem se incluir em outro espaço, não se dá adeus se não deseja ir para outro lugar. E o lugar pouco importa, se é para longe da vida. Para se despedir, o homem desesperado somente necessita não se desesperar. Só assim, então, poderá confrontar sua própria agonia e o seu desejo de morte. Se deseja morrer, então precisará desejar em todas as instâncias; se só sente quando está descontente e raivoso, tão logo esteja perto da morte, arrependê-lo-á. Assim, caso na mais profunda calma ainda encontre o intento de aniquilação, estará irreparavelmente certo e preciso de seu objetivo. Embora coincida, portanto, um estranho paradoxo para este ser: não pode se considerar desesperançoso se não circula em seu sangue, no momento em que se apaga, um sequer sentimento intenso de desconsolação. Quando acalmado, o homem desesperado é só mais um homem, como milhares de outros, que não têm nenhuma urgência de escapar do mundo de modo prematuro.

   É desta forma que a vida balanceia a si mesma. Nunca se quer totalmente morrer, ao passo de que não se almejava inteiramente viver, pois vivendo em totalidade logo se busca a integralidade da morte, e nela, se arrepende, para ansiar o retorno à vida.

Inimizade

artist

   Entre o pilar de concreto do escritório, que se dispunha precisamente ao lado da minha mesa, pus os olhos em um maltratado papel, enfiado numa disposição quase impossível de se retirar. Se não fosse pelo breve reflexo da lâmpada sobre a superfície laminada do papel, eu jamais teria identificado-o. Laminado, pois alguém certamente escondera um panfleto de rua com algo escrito nele. Usando uma caneta, consegui tocá-lo pelas pontas e jogá-lo ao chão. Quando o peguei, notei de imediato de que se tratava de um papel antigo. Talvez de muitos meses. Ainda dentro, provavelmente, de um ano. Estava manchado, empoeirado e não rasgara por um milagre, uma vez que parecia ter absorvido umidade. Ter algo escrito ali, ainda, seria um achado surpreendente. E assim foi. Havia, de certo, texto em caneta azul. E não estavam manchados. Provavelmente ficaram em uma face do papel que estivesse contra a umidade. Era uma letra incisiva, legível e expressiva, desenhada em verdadeira paixão; comprimida ao máximo para caber naquele pequeno folder. Digo isso porque não era somente intensidade em expressão - o próprio conteúdo do papel exalava tal força. 

   Estava escrito:

   Estranhamente, naquele dia em que a conheci, para meia dúzia de curiosidade e de apatia, eu não tive nenhuma impressão absoluta. Não me permiti ter, pois àquilo não depositava fé, esperança ou compromisso. De que adiantava induzir destino num momento onde o mais alto desejo era rejeitar a proposta que o levara até ele? Assim, não consegui me levar a nenhum pensamento de prospecção, mas de resiliência. Pensava, no dia, em somente resistir aos confrontos inoportunos nos quais tinha me metido. Daí reside sempre o engano do primeiro encontro. O primeiro encontro é, de toda via, insignificante e inóspito; não oferece nenhuma multiplicidade determinante ou garantia de causalidade. O primogênito do acontecimento é, portanto, sempre ineficaz como condição única. Um demônio traiçoeiro. Pois se acumula. Não o primeiro, mas o segundo, o terceiro, o vigésimo, o centésimo. É o crescente alavancar das interações que mortifica. Disfarça-se de pequeno, pois é, de modo imanente, pequeno; contudo transmuta mais tarde. Deste menor encontro, passei a ter grandes outros. Conheci-a sem muitas maneiras ou aprofundamentos, muito pouco escapava. Era astuta, embora parecesse desvinculada. Aos poucos, abria-se. Ao mesmo tempo, parecia se restringir. Liberava menos do que o necessário, às vezes se expunha sem vergonha. Quando soava conhecida, era estranha e indiferente. Nada fazia sentido diante das duas faces que eu contemplava em homogeneidade, em trocas constantes a depender do humor. Era cínica, desenfreada, mas distante e ociosa. Repetia os mesmos vícios meus, e não cedia aos meus esforços intelectuais. Atacava-me, mostrava uma fúria recíproca, um intento angustiante, e eu revidava sutilmente, o que fazia-a encolher, fantasmagorizar, fugir.

   Naturalmente, nem mais considerava o primeiro encontro, ou quem eu ou ela éramos quando este aconteceu. Já não tinha mais importância, ao meu ver. Coisa do passado, que não acrescentava mais no presente, onde tudo era ridículo. Havia perdido, enfim, o entendimento lógico de previsão, pois começava a conviver com a imprevisibilidade. Não sabia com precisão, seja no início ou no fim do dia, se veria-a. E caso eu a visse, que tipo de interação eu teria naquele dia? Uma extraordinariamente divertida... ou uma de registro tão monótono, de caráter tão apático? Dependia do humor dela, eu acredito. Pois se tivesse tido um dia ruim, transformaria o meu em um. E não precisava muito para isso. Sabia, sem perceber, que os seus encantos a tanto haviam aprofundado em mim, de modo quase bestial, de natureza íntima e inocente, que um mero olhar torto entortava-me. E uma distância sepulcral que sancionasse, doía-me como ser partido em dois por mil quilômetros. Assim como dualizava esse comportamento, eu também permitia-me desferir duas composições minhas. Em simultaneidade, divertia-me a repulsá-la. Santifiquei-me de muitas formas, embora, por ocasião, assemelhasse mais com um demônio, em espírito e mente, à medida que mergulhava em uma abundância de desejos, possessividade e contemplo. A ela, restava o verdadeiro papel de santa, por dentro, enquanto fosse maligna em pessoa.


Mesmo assim, vi-me e não me arrependi."


   E nesta breve leitura, emocionei-me. Pois também me vi como o autor se viu. E não me arrependi de assim tê-lo testemunhado. A quem quer se isso fosse direcionado, ou o seu autor, eu torço para que a história tenha prosseguido, uma vez que o texto se mostra sem conclusão e incompleto. Ou talvez a intenção fosse justamente não sinalizar fim ou propósito... Mas se este texto aqui foi colocado, então houve quem o colocasse, e aqui trabalhou... ou trabalha.  Pus o papel de lado. E necessariamente pensei: a quem compele esse exercício mental, afinal? Se quem vive isso são duas pessoas que não eu? Se aqui reside este papel sem algo que o defina por inteiro, não há sentido em buscar mais.

Descansem. Acabou.

Abismo (e a Dificuldade de Pensar)

zerochan

   Para aquele que, dentro do quarto trancado, sempre narrava os fatos incorruptos em simultaneidade e em paralelo com as coisas-da-vida, o que significa o abatimento intelectual de seus pensamentos? A morte de sua narradora? O que deduz de um silêncio abissal, de uma opaca escuridão cognitiva, do qual o único ruído é o resultado de um esforço indescritível por parte e por conjunto? Onde o que se olha se volta e se funde, imobiliza-se, por fim morre? De certo a inércia me é um inimiga de longuíssima data. Talvez mais antiga que qualquer prospecção interna. A mim, já tem sido esta tortura há imenso tempo: convivendo com a futura visão de que minha narradora jaz moribunda, em derradeira agonia e aguarda somente a brisa de um suspiro vazio e melancólico em seu ouvido. Aquele leve e insinuado murmúrio, que anuncia, em brevidade, o seu término.


   Caso a minha companhia interna, a minha voz neutra e ociosa, venha a cessar, cesso eu junto? Morrerei se aquilo que dentro do oco fala, morrer? Ou me sentirei com a mais estúpida, catastrófica solidão? Tenho tido os únicos debates verdadeiros; sóbrios e doentios; com ela. Nada além dela. Pois todos os meus amigos já se foram. Ou cessaram e calaram-se, assim como o objeto próprio deste discurso ameaça fazer. E o que me resta, de verdade, é pouco. É bem verdade, contudo, que o pouco é milagroso, que é, em proporção e densidade, o bastante para suprir o muito, uma vez que o que se é muito não é medido por quantidade, mas qualidade; e exclusivamente por via desta qualificação, e não quantificação, que se estima um valor inerente a um objeto. Portanto, posso me abundar possuindo pouco, em quantia. Todavia, não se afortuna de nem uma, nem outra, se o valor primordial é zero. Se nada possui, não se logra de nenhuma adjetivação. Daí nasce o meu instintivo pavor: com a morte da minha balbúrdia mental, encaro, crua e visceralmente, o abismo.

   Não que já não estivesse eu imergido antes no tal buraco. Há total familiaridade nessa condenação particular. O cadafalso não assusta quem, por dentro, testemunhou algo pior do que deixar de existir — existir sem assim desejar. Longe disso, é o presságio de um alívio mortal, a fuga de um sistema condenador e punitivo. Afinal, de que adianta uma jornada sem companhia? Do que adiantar viver, sem testemunhar, sem testemunha? A que se compele não ter plateia, espectadores, de sua miséria? Como produzir sem antes ter algo que queira consumir?

   Compreendo, entretanto, que depois de tanto tempo falando, a minha voz já queira descansar e ir. E sustente-se no argumento de que agora seu receptáculo biológico encontrou atividade contínua, incessante, absurda e autoritária — e isso o tirará a verba de pensamento. Talvez sinta-se ela traída, esquecida e subvalorizada. Éramos, pois, inseparáveis, de tal modo que não houvesse um momento sequer de abrupta e longa pausa. De repente, na primeira experimentada vivencial, abstrai-me. Eu, não obstante, estou de acordo com a destinação proclamada. Torna-se mais fácil desta maneira; aceitar a sentença que lhe foi incumbida, sem nem mesmo conferir a autenticidade de sua justificação. Pois acontece, correto? Está em certa definição: a minha voz me abandona. E tenho muito medo do abandono! Sofro! Agonizo em saber que, aos poucos, retorno ao retorno, ao ponto enfático de quando tudo o que eu possuía era zero — e ela. E sem ela, conhecerei o horizonte onde para todas as coisas se converge o nada. A inércia, o parar. É esta irrevogável sensação de desamparo, de falta de estrutura humana, de ineficaz ferramenta afetiva. A inserção da solitude, provavelmente. Porque, para mim, basta a companhia de um segundo ruído. De uma segundo tom, que, mesmo de caráter ilusório, traga-me serenidade.  

   Como restauro as cordas vocais, mutiladas centralmente, em picotes e tiras, e à integridade trago-as de volta? Como, decepada ao chão, remendo seus pedaços para voltarem à iluminação? Preciso reconstruí-la literariamente, para, assim, vê-la novamente gritar? Atenho-me, então, finalmente, a um simplificado conceito:

   Não posso parar de falar. Senão destarte, dentro em pouco, calarei-me para sempre. E não tão-só uma voz morrerá.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Ser Envelhecendo

zerochan

  Não à toa viemos chorando, desde o primórdio obscuro e afetuoso, desde o dia em que alguma-coisa nos colocou para fora de um ventre úmido e quente de uma estimada santidade autora chamada mãe, sem nem nos pedir permissão ou sequer nos dar uma chance de recusa. Mas é visível que nascemos gemendo, aos prantos: quem, afinal, foi o culpado por nos tirar da não-existência e, na base da pancada e da inserção, arremessar-nos neste mundo que até o diabo foi banido? Por Deus! Era necessário que houvesse tamanha e sem-vergonha punição para trazer a este mundo um danado de um ingrato? E este danado, que não teve o direito de escolha desde o princípio; que, pelo contrário, foi apenas empurrado várias vezes até ser concebido; cresceu. Cresceu, sem nem querer, e permaneceu vivo por muitos e muitos anos. Em virtude de talento observatório e razão para enxergar a tal mancha milagrosa e transcendental de uma vida que, de alguma forma, foi capacitada a se originar até mesmo sem ser encomendada, notou que, tudo bem, dava para tentar gozar deste pesadelo, nem que um pouquinho. “Por que não?”, indagou. “Posso ter vindo ou da inexistência ou da morte, pois uma vez não-vivo, devo ter alguma propriedade. Seja eu uma poeira, uma bactéria, um átomo divergente. E se não estava morto ou inexistente, então existia, mas não nesta forma. Talvez numa forma mais simplificada, inoculável, sem medidas ou espírito. Talvez eu fosse um pequeno componente de uma radiação interestelar, antes de chegar a ser um miserável de um feto. A questão é que… sou. E portanto nada a isso posso fazer exceto deixar de ser. Contudo, deixo de ser, as coisas deixam de existir. Se não existo, não posso observar. Se não observo, como posso atestar que, depois que deixo de ser, ainda há?”

   Por isso escolheu envelhecer, e não não-ser. Grande questão, contudo, é que envelhecer é muito mais árduo, fatigante, laborioso e confuso, visto que você tem de ser para testemunhar. E sem quaisquer tipos de “pule esta abertura”, temos de conviver com cada segundo existente. Não podemos avançar! Ensinam-nos, através dos aparelhos tecnológicos, que o ideal é poupar um minuto de seu tempo em virtude de uma escala maior, mas nos privam desta função onde realmente se haveria utilidade? Então, tendo que estar presente em cada presente neste presente de vida, as particularidades ingênuas e simplificadas do primeiro estágio de existência se tornam intensamente maiores, diversas e aleatórias, em um pico de estresse e ansiedade que se acumula de maneira composta, conforme se experiencia as outras conjunturas do jogo. Aos nostálgicos, as suas mais doces épocas são aquelas em que eles nem vivem mais. De certo! Somos ótimos fabricantes e produzimos memórias tão quanto consumimos carne de cadáveres para o jantar. E o teatro mental é sempre o mais glamoroso espetáculo, uma ode aos bons tempos — que foram horríveis. E deixam de ser horríveis, alguma hora? Talvez não. Mas é certo que são sempre belos e cinematograficamente iluminados na cuca que chamamos de mente; filmes da era dourada Hollywoodiana, onde cores e a falta delas se misturam em um homogêneo saudar saudoso. Saudosistas. Enfim, deixar de ser é fácil. Convenhamos, é fácil não ser. Ser é muito mais difícil. É preciso viver! E viver não é para todos. Pois não demora muito para que você vá percebendo que somente os vivos ativos — e sim, existem os inativos, ou deveria chamá-los de passivos? — podem, de alguma maneira, lograr dos benefícios de pertencer. Para comer, para festejar, para chorar ou para brincar. Para tudo que uma detestável existência prefira executar, neste universo de execução, há de ser “ativo”. Senão sofrerá de uma inércia tão esmagadora e angustiada, que acabará como eu: escrevendo sem propósito. 

   Assim como puxam a sua cabeça inocente e gorda daquele minúsculo espaço humano, o qual se expande, graças a Deus, não te contam, muitos anos depois, como diabos você faz para ser um vivo ativo. Seríssimo. Vem das cobras para ser largado às cobras. Não te ensinam; te catequizam com o mais profundo espírito empreendedor moderno. “Estude isso, seja isso, você verá como a vida é boa”. “Tudo virá ao seu colo como veio ao de Jesus”. Talvez porque Jesus já escolheu ser antes mesmo de ser! E a gente? Pobres bastardos, nós: fomos apenas arremessados sem dó nem piedade ao chão frígido do hospital. Ou quente, quem dirá? De certo fomos arremessados! Ou puxados impiedosamente por um par de luvas médicas! Não temos um evangelho ou um livro sagrado escrito para testemunhar o nosso terrível, e horrível e apavorante nascimento. Ninguém veio. Nenhuma estrela apareceu. Já estavam todas lá, mortas, distantes, inalcançáveis e não anunciaram nem sequer o tremeluzir de um novo espírito. Assim, marcamos nosso estimado dia de vinda. Não tão especial quanto gostaríamos, não é? De certo, de certo. Um pequeno número a mais a um conjunto a mais de algoritmos. Deste modo, para aqueles que provieram meio tortos de suas mães, com as cabeças um pouco desajustadas, e que começaram a ver neste mundo um conceito abstrato chamado arte, em vez dos numerais exatos que trazem o sucesso e a evolução da espécie não-convocada, não muitas coisas restaram. Pior ainda para os infelizes nascidos no tal “pais mais ao sul da América do Sul”, onde se come o pão amassado pela bunda de um velho. Não, os desafortunados que copularam com a ideia de produzir (e não executar) os interesses metafísicos dos resultados elétricos de uma massa abóbada — ao que me refiro? — só tem sofrimentos. Como executar aquilo que não é executável, mas concebido, da mesma maneira a qual acham que foram, em um ambiente onde a execução é o requisito primário para operar? Como podem, ridículas criaturas que eram rabisco de universo, fabricar inteligências? Fabricar coisas que geram coisas? Transformar o metafísico, o meta-ish, em propriedade, fórmula e essência, exatamente como fomos gerados? Além do ser, para o ser? 

   A enorme piada, esta qual nunca nos contam nem com a feitiçaria mais escabrosa ou a reza mais satânica, é que seu espírito está condenado ao martírio eterno e condenatório das pobres almas desadequadas de criatividade. Teu espírito, rogado de fortuna arte, nada mais é, para os degenerados dos algoritmos, um infortúnio; um desvio de dados; um outsider. E como a humanidade aprendeu a lidar com aquilo que não se adequa às suas religiosas normas? Ela o pune. Uma vez que a punição é exclusividade nossa, assim como a maldade, e apenas nós podemos executá-la. Por isso, de obviedade escandalosa, somos bombardeados com a catequese do empreendedorismo: “faça isso, reproduza isso, copie aquilo.” “Estude, estude muito.” “Estude para ser um médico. Estude para ser um advogado. Estude para ser um funcionário público.” “Você nunca será aquele”. “Isso é para outro mundo”. “Corra atrás enquanto é cedo”. “Isso não tem futuro”. 

   Mas sabe o que não tem futuro? Eventualmente? Você... e todos nós. Pois venho seriamente a pensar que por acaso não haja uma segunda vez e que não renascerei como um animal da floresta. Já é ruim demais ser atirado para o mundo uma vez; imagine duas, três, infinitas vezes. O que somos? Um gracejo de péssimo gosto de alguma-coisa que perdeu o controle do sistema? Consequentemente, do que adianta eu ser ou não ser aquilo que quero ser? O insucesso é assim um peso demasiadamente abominável? O que é a falha senão uma resultância daquilo que se tenta? Não posso? Não posso me permitir se arriscar em um destino que, por si só, é atrevido e pode me resultar numa vergonhosa morte (e de quem esta vergonha será, mesmo?), equilibrando-se assim o veredito da minha jornada? E assim envelheço, como todas as substâncias que são. Envelheço sem saber o porquê de estar, e sem compreender ou distinguir o porquê de precisar. E todos envelhecem comigo, mais cedo e mais tarde, e sem entender vou deixando de ser... para não ser. E assim como eu, todos, um dia, não serão.

   O meu verdadeiro medo é não ser mesmo sendo

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

O Cão e o Osso Escondido na Casinha

zerochan


Ele não sabe o motivo pelo qual esconde o seu osso das mãos gordurosas dos outros, quando se pega com constância pensando que é meramente um item calcificado, um resto biológico de algo que uma vez viveu e morreu — assassinado, na maioria das vezes. Não obstante, protege este resto mortal com a sua vida e os seus dentes. Ameaça dilacerar os seus dedos se, por um motivo, trazê-lo a um centímetro perto de seu alcance! É a razão de vida dele, do cão, que resguarde a existência de seu osso, pois a ele simboliza o mais santificado significado de vivência. É a sua razão e, portanto, aquilo que lhe designa o tão marcado e explorado sentido das coisas-como-elas-são. Entenda que para lhe tirar o instrumento, e só assim banhá-lo de uma vez por todas à luz do sol da humanidade, deve antes subjugar; o cão, não o osso. Precisa mostrar a ele o mais pungente sentimento de desforra — é assim que o atacará em sua alma bestial — e, com violência, arrancar-lhe seu juízo, jogá-lo para o solo rígido e cinza e mostrar à fera a substituição imediata, que deverá ser de plástico, ou de borracha, fresca e barulhenta, com furinhos e cor vibrante. Só assim para o enganar da demência. Para fazê-lo pensar, por um rastro de reflexão: "do que adianta eu dedicar minha vida a este osso se tudo o que querem, logo depois da casinha, é arrancá-lo de mim? Para que vou mordê-lo se as carnes e nem os fiapos resistem ao trato do tempo? E dizem que se eu o engolir, mesmo mastigado, rasgar-me-ei por dentro, inteiro! Não seria mais canino me divorciar da guarda da única coisa que me ressoa um pouquinho importante de se manter, se todos que me olham de fora coçam os dedos para sacrificá-lo ao quintal fétido?" E assim damos ração, peças bonitinhas de cereal, coloridas ou monótonas, para acalmar a fúria indivisível do cão, desta forma o amargurado não morderá o próprio rabo por vingança e fará seu sangue mofar a estrutura de madeira. Cometidos à pena, acredito, é que inclinamos a isso. Para os habitantes do mundo, e não da casinha, embora todas tenham convenientemente a sua, estimula-se comiseração se abeirar amigavelmente do ser e vê-lo recuado, mortificado, de rabo entre as pernas, com o único intento de proteger uma coisa ínfima (mas íntima), a memória de cálcio de um ex-ser, com a mais extrema determinação.

Ah! E não está certo o maldito cão? Não protegeria você, com o empréstimo de sua amada mãe, aquilo que só quem lhe tira é a Dona Morte? Para o quentíssimo inferno terá de ir o indivíduo que ameaçar o seu osso, querido amigo, mesmo se para si é uma peça absurdamente inútil! Pois toda a terra é uma inutilidade quando fora de sua circundante e humana expressão de realidade, concebida com o egocentrismo herdado das raízes do mundo-meu-pois-sou-eu-quem-o-ver. Quem terá o tremendo mau-cárater para enfiar descabidamente o braço dentro do covil animalesco do cão que tem o osso como seu único pé na vida? Mastigue os ursos de pelúcia e queime a borracha redonda — tudo o que ele quer; tudo o que queremos, nós, os cães, são os nosso supérfluos ossos; são os nossos prediletos restos mortais, tenha vindo ele da perna direita de um homem do primeiro século ou da púrpura atmosfera da inexistência, nascida de nenhum átomo, imoral e remanescente! Está em nossa casinha, no inóspito canto negro de nosso minúsculo espaço — dali não sai! Dali só a Morte nos tira! Arraste-nos isso à vida mais infeliz de todas, do que nos importaremos? Sem o osso, a existência é só mais um acordar, um dormir, uma corrida cíclica ao brinquedo borrado, um gole quente de uma água empoeirada... Sem que nos deixe mastigar, quietos e apáticos, aquilo o qual declaremos peça irrevogável de significação, somos sequer animais, sequer concepções biológicas, sequer funcionalidades em um plano incoerente, mas moléculas quebradas, quantificadas, invisíveis; engolidas, sem dúvidas, pelo universo, porém apenas porque ele engole a tudo, e mesmo os não-seres devem ser, de alguma forma, considerados, nem que por força do pensamento, por choque de via!

E a doença, a parvovirose canina não tratada —, criada, na verdade, pelo arranco do osso — começa aos devastados espíritos quando estes fitam a vazia escuridão sem nem mesmo olharem para cima ou para dentro. Ao saberem que lhes foram roubado sua substância quintessencial, perdem a íntegra aura de enxaqueca de suas almas, de seu escuro interior assombrado, e não somente ficam perdidos: acontecem-lhe coisa pior. Aceitam o plástico. Deixam, também, aos poucos, o enfermo crescer. Ou talvez, como derradeira opção, aceitam a vacina na carne já morta; morta de sonhos, putrificada de nascença, como se uma inerência amaldiçoada fosse induzida no ventre de sua progenitora. Oras! Trocariam suas vivências pela preservação óssea de seu artefato sagrado! Dariam os seus próprios ossos pela segurança do seu! Quem o joga fora é inevitavelmente o Diabo! Quando não, os seus pais! Por isso os cães, nós, mordem desde filhotes: já estão se defendendo da vida, preparando a mordida para que, no dia em que alguém — pois uma hora o infrator aparecerá — ousar invadir suas casinhas, eles possam arrancar-lhe a carne da traqueia e até roubar o osso deste que os atacaram, a fim de ter dois. Jamais aproxime a sua mão de um cão medroso; ele tentará morder o seu pescoço, e não a sua mão. O medo emprenha todas as violências, ainda mais quando conscientemente justificadas como "o motivo pelo qual eu ladro". 

E o cão, no fim, teria mais medo do quê? De ferir o inumano violador, de ser sacrificado pela sua luta ou de ser castrado por desobediência? Nem a morte amedronta uma vida sem o osso. A ele, é tudo isto o que importa, no final do dia daltônico, sendo que já nascemos morrendo — e, sem ela, nossa parte, só alongamos esse processo miserável.

terça-feira, 3 de março de 2020

Consciência Visceral


Às vezes, quando a quietude domina a sala e o barulho dos dispositivos ensurdecem os ouvidos com algazarra de vida, prazeres sonoros de tormento e expectação, tenho a apercepção de que, se eu enterrar os olhos com as pálpebras, conquistarei, estranhadamente, uma iluminação definitiva, que causará estremecimento em meus órgãos e os deixará saltitantes de esperança ansiosa (aquela responsável pela aceleração cardial e pela diminuição da afirmação do presente). E aí sorrio, ergo-me da cadeira, danço como um desgraçado e até rodopio de alegria e de conquista! Movendo a boca como um cantor, o corpo como um ator; aproveitando-me do ápice de comoção. Não sei, nesse momento conversado, pelo que eu danço, ou pelo que desejo ou do que se trata tamanha iluminação; contudo ela é definitiva, isso eu sei, portanto devo prosseguir crendo em sua salvação. Devo alargar os lábios num sorriso glamourizado, elevar os dedos em prece, dar cambalhotas de agradecimento (a quem, mesmo?) e acreditar em meu instintivo resgate. Bem, de fato é um sentimento engraçado — que não nego risadas a ele —, pois devo muitas de minhas maiores frustrações para o bendito mal-dito desgraçado. O safado, com a total permissão do uso informal desta palavra, tem o desfastio de existir justamente para a concepção retardada de sua própria erroneidade. Como assim? Para explicar não me leva muito tempo: a iluminação é real, de verdade, mas é um artifício psicológico para nutrir inseguranças, procrastinações, atrasos e irresponsabilidades. Toda revelação de vida, ainda mais quando revelada num momento de demasiado tédio e trivialidade, tem uma natureza ou revolucionária e devastadora ou maldosamente enganosa. Você a tem, por um segundo acredita que a sua existência foi, por um toque de Deus, acertada e que nada mais há com o que se preocupar. Agora você possui a motivação das estrelas, a fúria de uma explosão cósmica — sem notar, no entanto, que tudo aquilo que exerce uma enorme força geralmente se destrói para gerá-la. E não haverá nenhum toque santificado o qual eliminará todos os desgostos e insatisfações de um ser. Veja bem... por um lado eu não estou afirmando que o tédio não possa, efetivamente, conceber uma revolução. Ah, não, muitas vezes ele é, sim, o progenitor de tal potência. Não poucas, também, estará associado ao relampejo de definição. Mas, grande, como pode acreditar em guinadas severas, onde, sentado ao assento ramificado, teve mudanças de espírito tão brutas e viscerais, onde se eriçou, onde se pôs a gargalha intensamente, se todas as vezes em que você mudou não se percebeu? Diga-me, sinceramente, como esperar uma reviravolta de consciência se você está viciado em carne e consciência, ao mesmo tempo?

Agora um apelo à natureza: está viciado em carne por causa da consciência — ou tornou-se dependente da consciência para justificar o vício na carne? Porém, falando em anedotas, talvez estejamos todos, por natureza, viciados em matéria, e, com a evolução do indivíduo, fomos aos poucos aprendendo a construir supressões inteligentes e contratuais para evitar o desperdício prematuro do corpo. Se é dedicado a isto, desde à fase pueril, crescerá aos retalhos. O quanto vale, portanto, a autenticidade dos esforços para evitar uma compulsão descabida e um eventual destroçar da alma, da moralidade, do comprometimento, do caráter? Muito, eu diria, e seria capaz de valorizá-la a um patamar de nobreza — naquele velho, comum sentido, mesmo, de estabelecer um ato digno. Afinal, não seria todo ato de nobreza algo irresistivelmente insustentável à longa caminhada, desfalecendo pela sua incapacidade de consistência, mas de enorme peso, ao acontecer? Herdamos a nobreza dos maus, como podemos ser bons em praticá-la? Sem embargo, eu ainda sucumbiria a ela, se fosse capaz, para evitar o julgamento de quem domou a carne com a consciência. Seria nobre, ainda que significasse ser mau, porque o âmago do seu sentido é invertido diante da repetição comum. Sou, por conseguinte, sujo por aderir às minhas avarezas caninas, por não resistir aos meus faros obscenos, visto que, uma vez posto a consciência no mais alto patamar dos animais, qualquer degrau abaixo resulta numa bestialidade que deve ser enjaulada por pauladas e crueldade. E se eu pudesse pontuar uma tremenda incógnita, diria: você não para pelo coração fraco, contudo o deixa mais débil a cada não-resistir, esforça-se pelo contra-sentimento, mas só tem sentimentos — como ainda espera por uma iluminação definitiva?

Então... novamente sob o sossego audível do local, a balbúrdia do plástico emborrachado, você tem outro assombro. Desta vez, não uma iluminação — um afogamento. Uma inundação de obscuridade resoluta, que imerge os órgãos e causa calafrios, trocando os arrepios, sem prazeres e anseios, e com a apercepção de que, se enterrar os olhos com as suas pálpebras, nunca mais vai abri-las. Contrai os lábios, entorta-se no assento e cai como um verdadeiro desgraçado em sua particular miséria repetitiva, em seus avanços imperceptíveis, em seus planejamentos idealistas e irreais, que subsistem por segundos. Apesar de suas semelhanças às vezes em que se põe num otimismo divino, o afogamento resoluto em poucas circunstâncias engana, pois, por estar associado ao sofrimento inequívoco, fora arquitetado para dois outros possíveis resultados: ou o faz sofrer por azar, a fim de meramente acumular ânsia ou o faz sofrer por sua natureza da verdade — que, por lógica, é uma brecha autêntica para a mudança perseguida. Pois imagine só: um ser humano só pode se elevar durante a mais terrível das dores, sendo que dor estimula a evitação (e é um cenário inabitual, afastado da monotonia). Torna-se integralmente capaz de mudar pelo estímulo do medo. Evitamos a dor, o medo, pela evitação de que o corpo se destrua prematuramente. E como sabemos o que define o tempo e a prematuridade do corpo? Pelas médias? Mas você ainda se afoga... (não se esqueça do exórdio da resolução), e não pode se aproveitar de nenhuma brecha morto, então para que reserva essa força de esperança?

Então vamos à piada:

É num infinitesimal flagrante de teofania que a tensão, por fim, ricocheteia com bestialidade na carne vil da pessoa que a nega. E impregna e arrebata a consciência, sua improdutividade, com o pensamento ambivalente de aniquilação. Aniquilação pois, nesse instante de indiferença, nota-se que a matemática já prevera, há muito tempo, não falhar por azar; falha por se aferrar a uma previsão de louco. E assim se assemelha o homem ao louco, visto que está conscientemente investindo em valores outrora calculados, quando podia simplesmente cessar tal atividade, tal insistência, para se fixar em outra estranha obsessão, seja lá o quanto valesse, mesmo que em início não o desse nada. É  loteria depender do longo logro ou desejamos, apercebidamente, a prosperidade imediata? Não é, portanto, falta de iluminação pressupor otimismos, os quais não se inserem em qualquer perspectiva futura? Se fosse possível ter a frieza necessária para encerrá-los, sem apegos de dor, sem desesperos ansiosos ou sem ferir a preguiça de se comprometer, viveríamos mais felizes? E se o homem alcança o seu desígnio de ego, pode ser ele, em algum grau, contente com a conquista? Não desvendaria, em um centésimo de segundo, outro pulsar da egolatria e, então, se comprometeria a realizá-lo? Assim por diante, ad infinitum?

Então, para que serve essas idiotices esdrúxulas que tantos perseguimos, quase como uma tara sexual, quase enfeitiçada de ficção e alagada de desperdício biológico-temporal? Para ilustrar a meta-percepção de que somos criaturinhas autoconscientes de seus vícios, de suas luxúrias e de seus escapismos resplandecentes? Pois aí está uma meditação de gaiato: que diabos temos para, com fúria, defendermos tanto nossos devaneios? Substancialmente não é isso que fazemos para com os outros? Rasgamos memórias, pactos, códigos, relações, para cismar inflexivelmente com a visão de uma entidade destroçando nossas imagens de um jeito que não idealizamos e, por conseguinte, criar a ópera perfeita? Se não o fizéssemos, seríamos escravos autodeclarados da piada da vida. Seria chacota! E acredite: palhaços execram o uso de suas próprias imagens como o ponto da anedota. Sabem por quê? Porque a graça da chacota é, primariamente, não ser a graça dela. Desta forma, rimos — mas sem que nos ofendamos.

O que é a vida senão uma irretocável humorista, fruindo de um das graças mais refinadas que a realidade poderia propor junto ao desdém espacial, que é o humor do cadafalso? Ah, como é precisa em contemplar cada possibilidade com uma revira-volta bem jocosa, acessando incomensuráveis recursos de metalinguagem, mnemônicos, de hipocrisia, de retornos e de repentinidade; deixando tantos e tantos de fora! E talvez tenhamos que ensaiar o gargalho junto a ela, para nos esquivarmos destes sentimentos de escárnio que ela nos provoca. Se de tudo ri, ainda que artificialmente, como existe o homem? De bem com a vida? Destruído, e rindo; não pouparia, da mesma forma em que usamos os devaneios, da veracidade das coisas? Precisaria o riso ser autêntico para valer? Ou o mundo somente aceita qualquer risada derivada de um sensação genuína de felicidade? Pois então onde encontraríamos uma risada verdadeira neste mundo?

É inteligentemente concebível ao homem rir enquanto angustiado e completo de desesperanças. Não residiria aí um gênero de humor conhecido? Obtido exclusivamente na mais densa e negrume situação, como um veneno — tão raro quanto um, tão revitalizante quanto um —, que, só nesta forma, pode curar, se ministrado decentemente? Mas a ciência laboratorial do corpo tem a precisão médica de um cadáver: e no momento que eclode a tensão causadora da risada terminal, cujo som ecoa tão desfalecidamente, toda a piada se transmuta num desastre de Pompéia. Apercebe, por fim, que nenhum final de anedota da vida pode ser vívido, quando todas as revira-voltas são as que te levam para o caixão. Rá rá rá! E do que um presunto cadavérico pode rir sem nem mais a mandíbula abre, senão por força de gravidade?

Resposta: de ter sido o tempo todo o final da piada.